Mostrando postagens com marcador São Bernardo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador São Bernardo. Mostrar todas as postagens

domingo, 2 de outubro de 2022

Lutero e Staupitz

Johann von Staupitz, a quem o Senhor enviou a Lutero com uma mensagem de misericórdia, foi vigário-geral dos agostinianos para toda a Alemanha. Os historiadores falam dele nos termos mais elevados. "Ele era realmente de descendência nobre", diz alguém, "mas era muito mais ilustre pelo poder de sua eloquência, pela extensão de seu conhecimento, pela retidão de seu caráter e pela pureza de sua vida"*. É motivo para ficarmos gratos, e digno de nota, encontrar um homem tão piedoso ocupando um cargo tão importante, mesmo no último estágio da degeneração papal. Sua influência foi grande e boa. Ele possuía a estima de Frederico, o Sábio, Eleitor da Saxônia, que fundou a universidade de Wittemberg sob sua direção..

{*Waddington, vol. 1, pág. 47.}

A visita desse bom homem — o vigário-geral — para inspecionar o mosteiro de Erfurt foi anunciada exatamente na época em que a angústia da mente de Lutero atingiu seu auge. O corpo perdido, a aparência melancólica, mas o olhar sério e resoluto do jovem monge atraiu a atenção de Staupitz. Pela experiência passada, ele conhecia bem a causa de seu desânimo, e muito gentilmente o instruiu e consolou. Ele assegurou a Lutero que estava totalmente enganado ao supor que poderia estar diante de Deus com base em suas obras ou seus votos, que ele só poderia ser salvo pela misericórdia de Deus, e que a misericórdia deveria fluir para ele através da fé no sangue de Cristo. "Deixe sua ocupação principal ser o estudo das Escrituras", disse Staupitz; e, juntamente com este bom conselho, ele presenteou Lutero com uma Bíblia, que de todas as coisas na Terra ele mais desejava.

Um raio de luz divina penetrou na mente obscura de Lutero. Suas conversas e correspondências com o vigário-geral o ajudaram muito, mas ele ainda era um estranho à paz com Deus. Sua saúde corporal novamente cedeu sob os conflitos de sua alma. Durante o segundo ano de sua residência no convento, ele ficou tão gravemente doente que teve que ser removido para a enfermaria. Todos os seus antigos terrores voltaram à vista da aproximação da morte. Ele ainda ignorava o valor da obra consumada de Cristo para o crente, assim como seus professores. A imagem assustadora de sua própria culpa e as exigências da santa lei de Deus o encheram de medo. Não sendo um homem comum e passando por uma experiência que os homens comuns não conseguiam entender, ele estava sozinho, não podia contar suas dores a ninguém.

Um dia, deitado, tomado pelo desespero, foi visitado por um velho monge, que lhe falou do caminho da paz. Conquistado pela bondade de suas palavras, Lutero abriu seu coração para ele. O venerável padre falou-lhe da eficácia da fé e repetiu-lhe aquele artigo do Credo Apostólico: "Creio na remissão dos pecados". Essas poucas palavras simples, com a bênção do Senhor, parecem ter desviado a mente de Lutero das obras para a fé. Ele estava familiarizado com a forma dessas palavras desde sua infância, mas ele as repetia apenas como uma forma de palavras, como milhares de cristãos nominais em todas as épocas. Agora elas enchiam seu coração de esperança e consolo. O velho monge, ouvindo-o repetir as palavras para si mesmo: "Creio na remissão dos pecados", como que para sondar sua profundidade, interrompeu-o dizendo que não era uma mera crença geral, mas pessoal. Eu creio no perdão, não apenas dos pecados de Davi, ou dos pecados de Pedro, mas dos meus pecados. Até os demônios têm uma crença geral, mas não pessoal. "Ouça o que diz São Bernardo", acrescentou o velho monge piedoso, "o testemunho do Espírito Santo ao seu coração é este: seus pecados estão perdoados." A partir deste momento, a luz divina entrou no coração de Lutero e, passo a passo, através do estudo diligente da Palavra e da oração, ele se tornou um grande e honrado servo do Senhor.

domingo, 18 de outubro de 2020

O Concílio Envergonhado

No dia seguinte, Hus se apresentou pela terceira vez ao concílio. Trinta e nove proposições foram produzidas e lidas, alegando erros que ele havia avançado em seus escritos, suas pregações e suas conversas privadas. Hus, como a maioria dos reformadores, defendia a doutrina da salvação pela graça sem as obras da lei. Ele afirmou que ninguém poderia ser membro da verdadeira igreja de Cristo, qualquer que fosse sua dignidade, papas ou cardeais, se fossem ímpios. "A verdadeira fé na Palavra de Deus", disse ele, "é o fundamento de todas as virtudes." Ele apelou ao honrado nome de Agostinho nesses pontos; e sustentava que o único título de clérigo, prelado ou papa para a sucessão apostólica era possuir as virtudes dos apóstolos. "O pontífice que não vive a vida de São Pedro não é vigário de Cristo, mas o precursor do anticristo." Ele citou uma frase de São Bernardo que deu grande peso a este ditado solene: "O escravo da avareza não é o sucessor de São Pedro, mas de Judas Iscariotes." O concílio ficou envergonhado, pois nenhum clérigo se aventuraria a ridicularizar as palavras de tais honrados Pais. 

As proposições tratavam principalmente de duas coisas: (1) a falsa teologia de Roma -- Hus havia denunciado a doutrina papista da salvação pelas obras, nas muitas maneiras que a igreja a prescreve; e (2) o falso sistema eclesiástico do papado com seus abusos flagrantes -- esses ele expôs e condenou nos termos mais implacáveis. Mas sua condenação parece ter dependido de sua afirmação ousada de que nenhum oficial, rei ou sacerdote, tinha valor aos olhos de Deus, se o rei ou o sacerdote vivesse em pecado mortal. Quando interrogado sobre este ponto pelo cardeal de Cambraia, que viu sua posição perigosa na presença do imperador, Hus repetiu suas palavras em voz alta: "Um rei em pecado mortal não é rei diante de Deus." Essas palavras selaram seu destino. "Nunca existiu", disse Sigismundo, "um herege mais pernicioso." "O que!" exclamou o cardeal, "não estás contente em degradar o poder eclesiástico? Expulsarias os reis de seus tronos?" "Um homem", argumentou outro cardeal, "pode ​​ser um verdadeiro papa, prelado ou rei, embora não seja um verdadeiro cristão." "Por que, então", disse Hus, "depuseste João XXIII?" O imperador respondeu: "Por seus crimes notórios." Hus agora era culpado de outro pecado -- desconcertando e deixando seus adversários perplexos. 

Seria tedioso e desinteressante tomar nota de todas as falsas acusações e calúnias que se amontoaram sobre ele, e das respostas firmes que deu; mas o que segue pode ser considerado como a substância de seu longo julgamento. Ele foi veementemente pressionado a se retratar de seus erros, a assumir a justiça das acusações, a se submeter incondicionalmente aos decretos do concílio, e a renunciar a todas as suas opiniões. Mas nem promessas nem ameaças o comoveram. "Abjurar", disse ele, "é renunciar a um erro que foi sustentado. Quanto às opiniões imputadas a mim que nunca tive, a estas não posso retratar, quanto às que realmente professo, estou pronto a retratá-las -- para renunciá-las de todo o coração -- quando eu for melhor instruído pelo concílio." Os padres responderam à integridade de consciência de sua vítima: "A competência do concílio não é instruir, mas decidir, ordenar a obediência às suas decisões ou fazer cumprir a pena." Os “ternos” pastores de Constança agora exigiam em alta voz uma retratação universal, ou que se queimasse vivo o atroz herege. O imperador condescendeu em discutir com ele, o mais hábil e sutil dos doutores, tanto em filosofia quanto em teologia, e tentar raciocinar com ele; mas Hus respondeu com firme humildade que buscava instrução; que ele não podia abjurar erros dos quais não estava convencido. Ele foi levado de volta para a prisão; o fiel cavaleiro da Boêmia -- John de Chlum -- um verdadeiro Onesíforo -- seguiu para consolar seu cansado amigo. "Oh, que consolo para mim", disse Hus, "ver que esse nobre não desdenharia de estender o braço a um pobre herege acorrentado, que todo o mundo, por assim dizer, havia abandonado."

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Reflexões Sobre as Calamidades de Languedoque

Para toda mente atenciosa, para todo homem de fé, especialmente para aqueles que estudam a história do ponto de vista das Escrituras, as guerras em Languedoque são muito sugestivas. Elas são as primeiras já registradas desse tipo. Foi Inocêncio III o precursor novo tipo de guerra. Houve muitos casos de indivíduos sendo sacrificados por causa do sacerdócio católico, tal como Arnaldo de Bréscia, mas essa foi a primeira experiência em grande escala que a Igreja fez para manter sua supremacia pela força das armas. Observe que não foi o exército da Igreja saindo em santo zelo contra o pagão, o muçulmano ou o negador de Cristo, mas a própria Igreja em armas contra os verdadeiros seguidores de Cristo, contra aqueles que reconheciam Sua divindade e a autoridade da Palavra de Deus.

Podemos encher as páginas com citações de seus piores inimigos quanto à firmeza da fé deles, à pureza de sua moral e à simplicidade de suas maneiras. Daremos apenas dois ou três exemplos vindos das mais altas autoridades da igreja de Roma. "Eles negavam", diz Barônio, "a utilidade do batismo infantil; que o pão e o vinho se tornavam corpo e sangue do Senhor pela consagração de um padre; que ministros infiéis tinham direito ao exercício do poder eclesiástico ou a dízimos ou primícias; que a confissão auricular era necessária. Todas essas coisas os miseráveis ​​afirmavam que aprenderam com os Evangelhos e com as Epístolas, e que nada receberiam que não fosse o que encontravam expressamente contido nelas, rejeitando assim a interpretação dos doutores, embora eles mesmos fossem perfeitamente iletrados". Reinerius, o inquisidor e perseguidor dos albigenses, diz: "Eles eram os inimigos mais formidáveis ​​da igreja de Roma, porque possuem uma grande aparência de piedade, porque vivem retamente diante dos homens, creem corretamente em Deus em todas as coisas, e mantêm todos os artigos do credo; no entanto, eles odeiam e ofendem a igreja de Roma e o clero, e em suas acusações são facilmente cridos pelo povo". São Bernardo, que os conhecia intimamente, tendo vivido entre eles, mas que considerava seu dever opor-se a eles como sendo inimigos do papa, admite francamente: "Se você lhes pergunta sobre sua fé, nada pode ser mais cristão do que a resposta deles; se você observa a sua conversa, nada pode ser mais irrepreensível, e o que eles falam, tornam em bem por suas ações. Você pode ver um homem, pelo testemunho de sua fé, frequentar a igreja, honrar os anciãos, oferecer seus dons, fazer sua confissão, receber o sacramento. O que pode ser mais parecido com um cristão do que isso? Quanto à vida e às maneiras, ele não tenta enganar ninguém, não tenta levar a melhor sobre ninguém, não faz violência a ninguém. Ele jejua muito e não come o pão da ociosidade, mas trabalha com as mãos para o seu próprio sustento".*

{*Veja Milner e Gardner, conforme citados na seção anterior.}

Tal era, portanto, o caráter espiritual, moral e social dos albigenses, como evidenciado por seus próprios inimigos. Eles eram verdadeiras testemunhas de Cristo, evidentemente formadas pela graça de Deus para mostrar Seu louvor no mundo. E, se tivéssemos tantos escritos deles quanto têm os reformadores do século XVI, poderíamos talvez descobrir que eles eram mais simples em certos pontos de doutrina do que esses. Mas, segundo a mente do Senhor, outros trezentos anos foram necessários para amadurecer a Europa para a Reforma; durante esse tempo, as artes da impressão e da fabricação de papel foram descobertas.

Qual então, pode-se perguntar, foi o crime dos albigenses? O cerne da ofensa deles era simplesmente este: negavam a supremacia do papa, a autoridade do sacerdócio e os sete sacramentos, conforme ensinado pela igreja de Roma; e, aos seus olhos, não havia criminosos maiores na face de toda a terra; portanto, o extermínio absoluto deles era seu único decreto imutável. Aqueles que escapavam da espada do cruzado tinham de ser apanhados nas armadilhas do inquisidor.

"Em centenas de aldeias", diz o historiador, "todos os habitantes foram massacrados. Desde o saque de Roma pelos vândalos, o mundo europeu nunca lamentou um desastre nacional tão amplo em sua extensão ou tão terrível em seu caráter." Que registro! Que testemunha! E se tais são os registros da terra, quais não serão no céu! Oh, Roma! Roma! Embriagada com o sangue dos santos de Deus e coberta com as execrações de milhões, qual será o teu futuro? Como suportarás as acusações daqueles a quem enganaste com tuas mentiras e a quem fizeste perecer com tua espada? Será que alguém ousará pensar que estamos exagerando? Ouçam o discurso de um dos bispos aos cruzados antes da batalha de Muret: "Todo aquele que confessou seus pecados a um padre, ou tem a intenção de fazê-lo após a batalha, ao morrer obterá a vida eterna e escapará da passagem pelo purgatório. Eu serei vossa garantia no dia do julgamento. Parti, em nome de Cristo." Não era essa uma mentira enganadora de almas? Jezabel, porém, ouvirá sobre isso novamente um dia. "Porque já os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela. Tornai-lhe a dar como ela vos tem dado, e retribuí-lhe em dobro conforme as suas obras; no cálice em que vos deu de beber, dai-lhe a ela em dobro... Portanto, num dia virão as suas pragas, a morte, e o pranto, e a fome; e será queimada no fogo; porque é forte o Senhor Deus que a julga... E nela se achou o sangue dos profetas, e dos santos, e de todos os que foram mortos na terra." (Apocalipse 18:5-24)

Mas Roma, sem saber, traiu seu próprio objetivo. Apesar da terra de Languedoque ter ficado desolada, os albigenses que escaparam da espada fugiram para outros países. Pela graça e boa providência de Deus, eles pregaram o evangelho em quase todas as partes da Cristandade e testemunharam contra as crueldades, as superstições e as falsidades da igreja de Roma. A partir dessa época, começa a perder a confiança e a reverência da humanidade. Assim o Senhor preparou o caminho para Wycliffe e Huss, Melancthon e Lutero.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Inocêncio e a Cidade de Roma

Como um homem sábio, Inocêncio começou sua grande obra de vida reformando sua própria casa. Uma simplicidade rígida foi estabelecida no lugar do luxo da corte. A multidão de nobres e bem nascidos que antes lotavam o palácio foram dispensados, mas com belos presentes que os retinham como amigos, e que asseguravam seus serviços em ocasiões de alta cerimônia. Dos cidadãos, que clamavam pelo donativo com o qual eles tinham sido muitas vezes gratificados no início de cada novo reino, ele não se esqueceu, e assim assegurou o favor da multidão. Ele se assimilava à ousadia de Gregório VII, e à cautela política e paciência de Alexandre III. Ele conhecia os romanos e como administrá-los, e eles possuíam o pior caráter dentre todos os povos na história. Leia a evidência de São Bernardo ao escrever ao papa: "Por que eu mencionaria o povo? O povo é romano. Não possuo nenhum termo mais curto ou claro para expressar minha opinião sobre seus paroquianos. Pois o que mais poderia ser tão notório a todos os homens e eras como a devassidão e arrogância dos romanos? Uma raça não acostumada à paz, habituada ao tumulto -- uma raça impiedosa e intratável, e que neste instante despreza qualquer tipo de submissão que possa existir... A quem encontrarás até mesmo na vasta extensão de sua cidade que o teria como papa, a menos que fosse por lucro ou pela esperança de lucro, de promessa de fidelidade, de possuir melhores meios de machucar àqueles que neles confiam? São homens orgulhosos demais para obedecerem, ignorantes demais para governarem, infiéis a superiores, insuportáveis a inferiores, desavergonhados para perguntar, insolentes para recusar; importunos para obter favores, e incansáveis até obtê-los; ingratos quando os obtêm; grandes, eloquentes e ineficientes; muito mesquinhos, os mais falsos aduladores, e os mais venenosos detratores. Entre tais como esses procedes como pastor deles, coberto de ouro e de toda variedade de esplendor. O que suas ovelhas estão procurando? Se eu ousasse usar a expressão, eu diria que é um pasto de demônios, e não de 'ovelhas'."*

{*Waddington, vol. 2, p. 158}

Tal, como testemunhado por tal autoridade, era o caráter das pessoas que o novo pastor de Roma tinha em torno de sua pessoa, e a quem ele tinha que vigiar. Mas sua mente não ficaria desanimada, mesmo pelo estilo exaustivo de São Bernardo; com grande energia, prudência e habilidade, ele deu início ao seu reinado de sucesso.

Ao lado dos assuntos de sua própria casa, aqueles da cidade tinham sua atenção imediata. Seu primeiro objetivo era abolir o último vestígio da soberania imperial de Roma. Isto era um passo ousado, mas ele havia facilitado seu caminho ao distribuir, silenciosa e habilidosamente, dinheiro por todas as treze regiões da cidade. Até então, o prefeito de Roma mantinha seu ofício sob o Imperador, sendo representante da autoridade imperial. Mas Inocêncio o influenciou a rejeitar o poder imperial e submeter-se inteiramente ao poder papal. Ele tomou da mão dele a espada secular, o antigo emblema de seu poder, e o substituiu pelo cálice de prata, como símbolo da paz e amizade. O papa o absolveu de seu juramento de lealdade aos imperadores alemães, compeliu-o a fazer um forte juramento de fidelidade a si mesmo e a receber a investidura de suas mãos. Assim foi o último elo quebrado do poder imperial em Roma.

De modo semelhante, o novo papa persuadiu o senador, ou representante da legislatura, a renunciar, para que pudesse ser substituído por outro que se vincularia, por juramento, a si mesmo como soberano. Os juízes, oficiais, e todos os cidadãos eram obrigados a jurar obediência a sua majestade espiritual, e a reconhecer a exclusiva soberania da Santa Sé.

domingo, 10 de junho de 2018

O Alvorecer da Luz na Idade das Trevas

Durante a última parte do século XI, encontramos nomes famosos como Lanfranco, Anselmo e Berengário. Um novo impulso foi dado à atividade intelectual pelo trabalho desses e de outros professores eminentes. Foi por volta dessa época que as velhas escolas catedráticas se desenvolveram em seminários de aprendizagem geral, e estes se tornaram os ancestrais de nossas universidades modernas. Essa atividade intelectual, após um longo período de apatia, tornou-se extremamente atrativa, de modo que milhares se aglomeravam para assistirem às aulas, e, como homens há muito tempo privados da árvore do conhecimento, abraçaram com entusiasmo o que ouviam. No fundo, foi uma reação contra a autoridade dogmática da igreja, pois ensinava aos homens que, a partir daí, era possível raciocinar e inquirir.

Pedro Abelardo foi o mais audacioso, e de longe o mais popular de todos os professores sobre dialética -- que declarava ser a ciência ou a arte de discriminar a verdade do erro pela razão humana. Esse notável homem nasceu em 1079, perto de Nantes, na região francesa da Bretanha. Seu pai, Berengário, foi senhor do castelo de Le Pallet, e embora Pedro fosse seu filho mais velho, desde cedo preferia "os conflitos de disputas de argumentos aos troféus dos exércitos", e assim, renunciando à herança familiar de seus irmãos, entregou-se à vida acadêmica. Foi primeiro aluno de Roscelino, e depois de Guilherme, arquidiácono de Paris, e também de Anselmo, professor de teologia de Lauduno. Mas não precisamos entrar em detalhes sobre a longa e extraordinária história desse homem. É uma história de vitórias, crimes e infortúnios. Ele foi, ao mesmo tempo, o representante e a vítima da teologia escolástica que pôs em perigo o poder e a constituição da igreja romana. Ele foi o primeiro exemplo de um homem que professava a ciência da teologia e que não era um padre. Por onde ia, milhares de acadêmicos entusiastas lhe rodeavam. "Multidões", diz o biógrafo de Bernardo, "somando milhares, cruzavam altas montanhas e amplos mares, e suportavam todo tipo de inconveniência da vida, para desfrutar do privilégio de ouvir as aulas de Abelardo". "Sua eloquência", disse outro, "era tão fascinante que o ouvinte se encontrava irresistivelmente levado pela correnteza; e se um oponente fosse forte o suficiente para se levantar contra ele, a agudeza de sua lógica era tão infalível quanto a torrente de sua oratória, e em todos os combates levava o prêmio"*.

{*Life and Times of Bernard, Morrison, p. 290; Eighteen Christian Centuries, White, p. 266.}

Abelardo escreveu, assim como lecionou, sobre muitos assuntos importantes; mas ele não era sábio no que diz respeito às doutrinas fundamentais do cristianismo. E mesmo assim, em toda Europa, nenhum campeão da verdade e ortodoxia podia ser encontrado para enfrentar em combate esse gigante herético. Bernardo de Claraval, com o tempo, recebeu inúmeros apelos. Uma carta de Guilherme, abade de São Teodorico, tirou-o de seu claustro. O santo e o erudito em lógica se encontraram em Sens, em 1140. O rei da França estava presente, com um grande número de bispos e eclesiásticos. Abelardo estava cercado de seus discípulos, e Bernardo com dois ou três monges. Um se dirigiu a razão de poucos, e o outro inflamou os corações e paixões de todas as classes. Um foi apoiado por seus admiradores, e o outro por adoradores. Um tinha sido denunciado como herege, e o outro tinha a reputação de ser o homem mais santo de sua época, acima de reis, clérigos, e até mesmo do papa. Sob tais circunstâncias, Abelardo não tinha chances. Ele logo sentiu o poder que estava contra ele, e, antes que as passagens incriminadas fossem todas lidas, ele ergueu-se e disse, para o espanto de todos os presentes: "Eu me recuso a ouvir mais, ou a responder a qualquer pergunta; eu apelo a Roma"; e deixou a assembleia.

Alguns dizem, em explicação para essa conduta inesperada, que as fileiras de rostos hostis que ele viu diante dele, não apenas apagaram seu entusiasmo, como também fizeram com que ele sentisse que sua vida estava em perigo. Ouvindo que um relatório do concílio tinha chegado em Roma, e que tinha sido condenado pelo papa, ele, em sua angústia, pediu socorro ao "venerável" Pedro de Cluny, que, por pena de seus infortúnios, ofereceu-lhe asilo em seu mosteiro, embora fosse oposto a suas doutrinas.

Podemos apenas observar, de passagem, que a bem conhecida história dos sofrimentos de sua bela Eloísa deu origem a uma nova ideia sobre o lugar da mulher na sociedade, sem a qual nenhuma civilização verdadeira poderia ter acontecido. Até esse período, a igreja olhara declaradamente com desdém para a mulher, pois ela tinha sido a primeira a cair em transgressão. Mas a tocante história dos infortúnios de Eloísa levou à elevação da mulher ao seu devido lugar no círculo social.

Abelardo, caído e de coração partido, após passar cerca de dois anos nas solidões de Cluny, recebendo muita bondade de seu caridoso abade, e satisfazendo seus juízes eclesiásticos com a humildade de seu arrependimento, encerrou sua agitada vida no ano de 1142. Seus princípios viveram em muitos de seus discípulos, e um deles merece uma atenção especial.

domingo, 3 de junho de 2018

Bernardo e Abelardo

Antes da morte de Inocêncio, Bernardo foi chamado para longe de seu pacífico retiro em Claraval para fazer guerra contra um novo inimigo da igreja: Pedro Abelardo. Esse novo conflito surgiu dos movimentos intelectuais da época, e marca uma época distinta da história da igreja, da literatura e da liberdade espiritual e civil. Vamos atentar brevemente para o que levou a isso.

A maioria de nossos leitores estão cientes de que a erudição que tinha sido acumulada nas línguas latina e grega foram quase inteiramente destruídas pelos bárbaros no século V. O que é conhecida como literatura antiga foi quase completamente perdida quando as nações bárbaras se estabeleceram nas ruínas do império romano. Por completos quinhentos anos, a grosseira ignorância prevaleceu. Qualquer conhecimento que restava foi confinado aos eclesiásticos; e eles, durante esse período, eram proibidos de estudar ou copiar a erudição secular. Não obstante, alguns dos monges, especialmente os da ordem beneditina, coletaram e copiaram manuscritos antigos; e, como diz Hallam: "Nunca deve ser esquecido que, se não fosse por eles, os registros dessa literatura teriam perecido. Não podemos afirmar que, se eles tivessem sido menos tenazes em sua liturgia latina, na tradução Vulgata das Escrituras, e na autoridade dos pais da igreja, menos superstição teria crescido; mas não podemos hesitar em pronunciar que toda a erudição gramatical teria sido deixada de lado. Mas entre eles, embora os exemplos de grosseira ignorância fossem excessivamente frequentes, havia a necessidade de preservar a língua latina, na qual tinham sido escritas as Escrituras, os cânons e as outras autoridades da igreja, assim como as liturgias regulares, e em cuja língua deveriam ser escritas as correspondências dentro da hierarquia clerical. Essa atividade continuou fluindo, mesmo nas piores estações, como um fluxo fino, mas vivo."*

{* Literature of Europe in the Middle Ages, vol. 1, p. 4.}

Dentre esses monges devia haver toda variedade de mentes: algumas, sem dúvida, grosseiras, lentas e mecânicas; outras, refinadas, ativas, questionadoras, que não se deixavam confinar dentro das barreiras da doutrina católica estabelecida, nem se submetia ao poder da ordem sacerdotal. Assim foi; assim provou-se ser. O reformador, o protestante, surgiu da ordem monástica. Houve muitos Luteros prematuros. Em cada insurreição, conta-se, seja religiosa ou mais filosófica, contra o sistema dogmático dominante, um monge foi o líder, e tinha havido três ou quatro dessas inssurreições antes do tempo de Abelardo. Godescalco, no século IX, foi flagelado e aprisionado por sua teimosa confiança no que era chamado de predestinacionismo. João Escoto Erígena, um monge mais erudito da Irlanda ou das ilhas escocesas, foi convidado por Hincmaro, arcebispo de Reims, a se opôr a Godescalco; mas ele não alarmou menos a igreja do que seu antagonista, ao apelar para um novo poder acima da autoridade católica: a razão humana. Ele era um poderoso racionalista, mas especulava em grande parte na teologia escolástica. Sob a censura da igreja, ele fugiu para a Inglaterra, e encontrou um refúgio, conta-se, na nova universidade de Oxford fundada pelo rei Alfredo.

Bernardo Parte de Claraval (1130 d.C.)

Uma grande cisma na igreja, causada por dois papas inescrupulosos, foi a ocasião em que São Bernardo foi retirado relutantemente de sua pacífica reclusão e mergulhado de vez nos assuntos do mundo. Mas, como um exemplo do que era uma comum ocorrência em conexão com as eleições papais, daremos alguns detalhes. O leitor lerá e poderá julgar por si mesmo acerca da alegada infalibilidade papal. Infelizmente, poucos dos papas foram decentes exteriormente.

Quando o Papa Honório II estava para morrer, mas antes de ter dado seu último suspiro, o cardeal Pietro Pierleoni, que era neto de um agiota judeu, fez um ousado esforço para ocupar a cadeira de São Pedro. Mas, quando o pontífice moribundo apareceu à janela e mostrou ao povo que ainda estava vivo, Pietro e seus amigos se retiraram pelo momento. Um outro partido, determinado a excluir Pietro, e assistindo até que o pobre papa morresse, imediatamente proclamou o cardeal Gregório como o supremo pontífice do mundo cristão sob o nome de Inocêncio II. O partido de Pedro, ao mesmo tempo, elegeu seu papa e o vestiu como pontífice, declarando que ele, sob o título de Anacleto II, era o autêntico vigário de Cristo.

Roma, a cena de infindáveis lutas e guerras, estava agora cheia de dois exércitos de partidários ferozes. A devastação e o derramamento de sangue rapidamente se seguiram após as ameaças e maldições espirituais. Anacleto, conta-se, à frente de um grupo de mercenários, iniciou o ataque sitiando a igreja de São Pedro. Ele forçou seu caminho para dentro do santuário, carregando o crucifixo de ouro e todo um tesouro em ouro, prata e pedras preciosas. Tais riquezas levaram um grande número a ficar do lado dele. Ele era rico e tinha condições de pagar por seguidores. Ele assaltou e despojou as igrejas da capital, uma após a outra. Inocêncio logo se convenceu de que Roma, no atual estado de calamidade pública, não podia ser um lugar seguro para ele. Ele decidiu partir. Sua pessoa corria perigo. Foi com grande dificuldade que ele e seus amigos escaparam em duas galés e chegaram em segurança ao porto de Pisa. De lá, dirigiram-se à França, e foram recebidos de braços abertos pelas comunidades de Cluny e Claraval.

Bernardo zelosamente abraçou a causa de Inocêncio. Seu zelo o tirou de seu covil. Ele viajou de soberano a soberano, de condado a condado, de mosteiro a mosteiro, até que conseguisse que Inocêncio fosse reconhecido pelos reis da França, Inglaterra, Espanha, o imperador Lotário, os mais poderosos clérigos e as comunidades religiosas por todos esses países. Apenas o poderoso Duque Rogério da Sicília apoiava Anacleto, e impedia que Inocêncio retornasse a Roma. Mas a morte veio para o alívio de todos os partidos. Anacleto morreu em sua invencível fortaleza em Santo Ângelo em janeiro de 1138, tendo desafiado todos os seus inimigos por oito anos. Inocêncio retornou a Roma em maio com Bernardo ao seu lado, e assim foi devidamente reconhecido como supremo pontífice.

domingo, 27 de maio de 2018

A Era dos Milagres e das Visões

Para aqueles que estão familiarizados com o espírito e temperamento da era medieval, essas crenças sem fundamento não são motivo de surpresa; mas para aqueles que estão familiarizados apenas com a época em que vivemos pode parecer estranho que as pessoas pudessem ser tão fracas para acreditar nessas coisas*. E se não fosse por seu valor histórico não acharíamos essas coisas dignas de serem transcritas. Mas essas coisas mostram, como nada mais pode, os modos de pensamento e a medida do desenvolvimento mental do homem na época, e sobre esse terreno podemos entender e explicar porque tais histórias tolas e ficções absurdas eram recebidas como a presente revelação de Deus. O resultado foi, como Satanás pretendia até mesmo no caso de verdadeiros cristãos, que a Palavra de Deus, que é o único padrão de fé e prática, fosse completamente deixada de lado, e as mentiras dos enganadores cridas. Um homem bom e talentoso, como Bernardo deve ter sido, estava profundamente imbuído da credulidade supersticiosa de sua época. Ele acreditava, juntamente com outros, que Deus tinha realizado milagres através dele. Mas todos os homens no século XII, e por vários séculos, tanto antes como depois, criam em milagres, visões, revelações, e na interferência tanto de anjos bons quanto de maus em coisas terrenas.

{* N. do T.: Este livro foi escrito no século XIX. Hoje em dia, não é incomum vermos novamente multidões crendo em "fábulas profanas", como foi profetizado sobre os "últimos tempos" (1 Timóteo 4:1,7). }

O efeito do sistema monástico sobre o povo em geral na idade das trevas é devido à prontidão deles em crer em qualquer coisa que um monge dizia, especialmente quando se tratava sobre o bem ou o mal, o céu ou o inferno. Os sinos prateados dos conventos constantemente lembravam o senhor feudal e seus vassalos da ocupação celestial dos monges, o que, para suas mentes supersticiosas, devia surtir um grande efeito. E não é de se admirar. Ali no vale solitário, em meio ao isolamento da natureza, ficava o mosteiro santo. O príncipe, o camponês e o indigente podiam bater em seus portões e encontrar abrigo dentro de suas paredes sagradas. A paz era prometida nesta vida a todos que entrassem, e o céu após a morte. O coro de canções de vigílias e matinas durante a noite devia apelar para os sentimentos religiosos de todos ao redor, e enchia-os da mais santa admiração e reverência por essas pessoas celestiais. Por isso, o mosteiro era considerado o portão do céu, e todos os seus internos como servos do Altíssimo. Era, sem dúvida, uma grande misericórdia naquela época para o pobre, e para o povo em geral, especialmente durante o reinado do feudalismo. 

O Poder da Pregação de Bernardo

Após esse período, de acordo com seus biógrafos, a fama e influência de Bernardo se espalhou rápida e amplamente. Sua saúde tinha sofrido tanto pelas práticas ascéticas que ele não conseguia mais trabalhar no campo com seus irmãos pelo seu mantimento diário; mas ele trabalhava com sua pena (caneta), e sua pregação retinha toda sua impressionante solenidade e eloquência persuasiva. Seu rosto pálido, forma macerada e corpo fraco contrastava estranhamente com sua poderosa voz, sua incrível eloquência e o fervor ardente de seus comoventes apelos. Quando era anunciado que ele pregaria em algum lugar, esposas se apressavam em esconder seus maridos; mães, a seus filhos; amigos, seus amigos -- levando-os para longe, para que não renunciassem ao mundo para viverem no claustro, pelo poder irresistível do santo abade. Sua reputação como pregador e escritor logo se espalhou por toda a Cristandade, e o mundo inteiro começou a atribuir a impressão que ele produzia a um poder divino, e a considerá-lo como tendo o dom de operar milagres.

O "Vale Claro" logo estava cheio de candidatos à admissão; o número de seus internados rapidamente aumentou para setecentos; e o número de mosteiros fundados pelo próprio Bernardo chegou a cento e seis. Eles estavam espalhados pela França, Itália, Alemanha, Inglaterra, Espanha, e de fato em cada país do Ocidente. E, como pode-se esperar, todos olhavam com uma reverência e afeição supersticiosa para seu fundador. Claraval tornou-se, assim, um tribunal livre e aberto no qual todos podiam apelar sem custo, e do qual, conta-se, todos se retiravam sem insatisfação, sejam os justificados ou os condenados. Ele sabia como se dirigir às pessoas de todas as classes em um estilo muito adequado ao entendimento delas, e assim exercia uma imensa influência sobre todos os tipos de homens. Seus discípulos admirados competiam uns com os outros para publicarem em todo lugar as maravilhas feitas por suas mãos ou suas orações, até que cada ato seu se tornasse um milagre e cada palavra uma profecia. Nem os Evangelhos contêm tantos incontáveis milagres como os da vida de Bernardo. Ele curava doenças pelo seu toque, o pão que ele abençoava produzia efeitos sobrenaturais, e um homem cego passou a enxergar ao ficar em pé no mesmo lugar em que o homem santo tinha ficado!

Bernardo Parte de Cister

A chegada de Bernardo, de seus parentes e de seus seguidores em Cister revelou-se um ponto de virada na história da cidade. A popularidade do pequeno mosteiro aumentou, e seus dormitórios ficaram lotados. Logo tornou-se necessário procurar os meios de fundar um outro. Bernardo foi selecionado por Estêvão, o general das comunidades cistercienses da França, como o chefe da comunidade. Doze monges e seu jovem abade -- representando o Senhor e Seus apóstolos -- reuniram-se na igreja. Estêvão colocou uma cruz nas mãos de Bernardo, que solenemente, à frente de seu pequeno grupo, partiu de Cister. Após viajar em direção ao norte por quase noventa milhas, eles chegaram a um vale em Champanhe chamado de Vale do Absinto, mas que então passaria a ser chamado de Claraval -- o Vale Claro. Era uma solidão estéril, e por um tempo as dificuldades que a pequena comunidade tinha de suportar foram excessivas. Um rude tecido para se abrigarem do vento, da chuva, do calor e do frio, foi fabricado com suas próprias mãos -- eles foram obrigados a viver de folhas de faia, nozes e raízes, misturados com grãos grosseiros, até que o Senhor em misericórdia supriu a necessidade deles a partir da compaixão dos camponeses vizinhos. É claro, os suprimentos de dinheiro e milho eram atribuídos à intervenção miraculosa de São Bernardo, sua piedade, suas orações e suas visões proféticas. Mas o bom Senhor teve piedade e salvou aqueles pobres homens iludidos de uma verdadeira morte por inanição.

Guilherme de Champeaux, bispo de Chalons, ouvindo que a vida de Bernardo estava em perigo pelo extremo rigor de suas mortificações, conseguiu afastá-lo de Claraval por doze meses; e, obrigando-o a se alimentar e descansar direito, salvou-o de um lento mas certo suicídio. Em anos posteriores, Bernardo expressou desaprovação de tal excesso de mortificação como aquele que enfraquecera seu próprio corpo e prejudicara sua própria força.

A Profissão de Fé de Bernardo

Um ano se passou desde que Bernardo entrou em Cister. Sua provação tinha terminado; ele agora faz sua profissão de fé. Essa cerimônia era realizada com grande solenidade, e cercada com tudo o que poderia transmitir admiração e majestade. O noviço era chamado para dentro da congregação e, diante de todos, abria mão de todos os bens mundanos que possuísse. Sua cabeça era raspada, e seu cabelo queimado pelo sacristão em um utensílio usado para tal propósito. Indo para os degraus do presbitério, ele então lia a forma da profissão, fazia o sinal da cruz e, inclinando seu corpo, se aproximava do altar. Ele colocava a profissão no lado direito do altar, que ele beijava, curvava novamente seu corpo, e retirava-se para os degraus. O abade, em pé do outro lado do altar, retirava dele o pergaminho, enquanto o noviço implorava perdão sobre suas mãos e joelhos, repetindo três vezes as palavras: "Recebe-me, ó Senhor". Todo o convento respondia com "Gloria Patri", e o cantor começava o salmo: "Tem misericórdia de mim, ó Deus", que era cantado alternadamente pelos dois coros. O noviço então se humilhava aos pés do abade, e depois fazia o mesmo perante o prior, e sucessivamente perante toda a irmandade -- até mesmo perante os doentes, se houvesse algum. Próximo ao fim do salmo, o abade, portando seu báculo, se aproximava do noviço e o fazia levantar. Um capuz era abençoado e aspergido com água benta, e, retirando do noviço suas vestes seculares, as substituía pela vestimenta monástica. O "Credo" era entoado, o noviço tinha se tornado monge, e tomava seu lugar junto ao coro.*

{* Estes relatos são extraídos principalmente de The Life and Times of St Bernard, por James Catter Morrison, M.A.}

Os Mosteiros Cistercienses

Estêvão Harding, um inglês, nascido em Sherborne em Dorsetshire, foi abade no monastério cisterciense em Cister. Ele seguiu as regras de São Bento, mas com severidades adicionais. Eles tinham somente uma refeição comum no dia, e tinham doze horas de trabalho antes de recebê-la. Eles nunca provavam carne, peixe ou ovos, e leite apenas raramente.

Era comum, quando alguém desejava se tornar um monge em Cister, de acordo com o biógrafo de Bernardo, fazê-lo esperar por quatro dias antes de ser levado à presença do convento reunido. Depois disso, ele se prostrava diante do púlpito e o abade lhe perguntava sobre o que ele queria. Ele então respondia: "A misericórdia de Deus e a vossa". O abade ordenava que ele se levantasse e o expunha à severidade das regras do mosteiro, e então perguntava novamente sobre suas intenções; e, se ele respondesse que guardaria tudo, o abade dizia: "Que Deus, que começou uma boa obra em ti, a termine". Esta cerimônia era repetida por três dias, e após o terceiro ele passava da case de hóspedes para as celas dos noviços, e então imediatamente começava o ano de provação.

A seguir veremos a rotina comum no mosteiro durante o ano em que Bernardo esteve ali. Às duas da manhã o grande sino tocava, e os monges imediatamente se levantavam de seus leitos duros e se apressavam pelos claustros escuros em silêncio solene para a igreja. Uma única pequena lâmpada, suspensa no teto, fornecia uma luz cintilante, apenas o suficiente para indicar-lhes o caminho através do edifício. Após a oração ou o serviço divino eles se retiravam, e após um breve repouso se levantavam novamente para as matinas, que demoravam cerca de duas horas; então realizavam outros serviços, em parte regulados de acordo com a estação do ano -- verão ou inverno; mas eles eram empregados em vários exercícios religiosos até às nove, quando saíam para trabalhar nos campos. Às duas eles jantavam, no cair da noite eles se reuniam para a oração das vésperas; às seis ou oito, de acordo com a estação, eles terminavam o dia com as orações da última hora canônica, e então se recolhiam imediatamente ao dormitório.

No entanto, por mais severas que pareçam ter sido essas práticas e austeridades, elas estavam longes de satisfazer o zelo e espírito de auto-mortificação de Bernardo. Ele passava seu tempo em solidão e estudo. O tempo dado ao sono ele considerava como perdido, e costumava comparar o sono à morte, afirmando que dorminhocos podiam ser considerados como mortos entre os homens, assim como os mortos estão dormindo diante de Deus. Ele lia diligentemente as Escrituras e se esforçava em trabalhar em sua própria concepção de religião perfeita e angelical. Ele tinha tão absolutamente isolado seus sentidos da comunhão com o mundo exterior que parecia morto para qualquer impressão externa: seus olhos não podiam distinguir se sua câmara estava celada ou não ou se ela tinha uma janela ou três. Da escassa comida que ele comia, seu paladar inconsciente tinha perdido totalmente a percepção do estado da comida, se estava estragada ou saudável. Ele bebia óleo e não podia distingui-lo da água. E ainda assim, este homem iludido, embora não duvidemos de que já fosse salvo pela graça, estava fazendo isso tudo pela salvação; e ainda assim, como de costume, ele não estava satisfeito. Ele falava de si mesmo como se fosse apenas um noviço: outros poderiam tê-la alcançado, mas ele estaria ainda apenas começando sua santificação.

São Bernardo e o Monasticismo

Como o cristianismo e o entusiasmo monástico, na teoria da igreja romana, era, nessa época, a única verdadeira perfeição cristã, apresentaremos ao leitor algumas particularidades desse sistema, para que possa julgar, por si mesmo, a extrema cegueira até mesmo de verdadeiros crentes como Bernardo, e a terrível perversão do sagrado nome do Cristianismo. Se as provas não fossem inquestionáveis, seria difícil crer em tais fatos. A renúncia ao mundo, a solidão, o asceticismo, a mortificação severa, eram coisas pregadas quase como se fossem o único caminho seguro para o céu. Os supostos méritos do monastério, e não da obra consumada de Cristo, era a base de admissão por São Pedro aos reinos de glória. Por isso, quanto mais sincero fosse o monge, mais ele infligia a si mesmo todo tipo de tortura e miséria. Este era o engano: "Quanto mais longe do homem, mais próximo de Deus. A santidade era medida pelo sofrimento. Toda a simpatia humana, todos os sentimentos sociais, todos os laços de parentesco, todas as afeições, deveriam arrancadas pelas raízes do espírito que geme; dor e oração, oração e dor, deveriam ser as únicas e incansáveis ocupações de uma vida santa."

Certamente está é uma obra-prima de Satanás, a mais profunda ilusão dos conselhos do inferno. Que a tua santa Bíblia seja teu guia, querido leitor; e descanse com a certeza de que todo o que crê no Senhor Jesus Cristo é, e não apenas será, mas é salvo, e que todo aquele que verdadeiramente crê deve cuidar em manter boas obras, em virtude da natureza divina e do poder do Espírito Santo.  

São Bernardo, Abade de Claraval

O mais celebrado desses homens [do século XII] é o famoso São Bernardo. Ele é considerado o mais brilhante representante da religião católica romana que a igreja teve desde os dias de Jerônimo, Ambrósio, Agostinho, e Gregório. Por meio século, ele aparece diante de nós como o chefe dirigente e governante da Cristandade -- o oráculo de toda a Europa. Os papas são perdidos de vista sob a luz mais clara do abade. "Ele é o centro", diz um de seus biógrafos, "sobre os quais se reúnem os grandes eventos da história cristã, de cuja mente fluem os impulsos que animam e guiam a Cristandade latina, a quem convergem os pensamentos religiosos dos homens. Ele governa, da mesma forma, o mundo monástico, os concílios dos soberanos seculares, e os desenvolvimentos intelectuais da era. Acredita-se, por uma era de admiração, que ele tenha confundido o próprio Abelardo, e que tenha reprimido as mais perigosas doutrinas de Arnoldo de Bréscia". Para aqueles que já leram sobre sua vida, essa imagem não parecerá exagerada. Mas, ao lançarmos luz sobre aqueles tempos, tomaremos nota primeiramente sobre sua criação e educação.

Bernardo nasceu de nobre parentesco na Borgonha. Seu pai, Tescelin, era um cavaleiro de grande bravura e piedade, de acordo com as ideias religiosas predominantes na época. Sua mãe, Alèthe, era também bem nascida, e um modelo de devoção e caridade. Bernardo, o terceiro filho deles, nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em 1091. Desde sua infância ele era pensativo e devotado à religião e ao estudo. Sua piedosa mãe morreu enquanto ele ainda era jovem, deixando seis filhos e uma filha. Ele foi, então, deixado livre para escolher sua ocupação de vida. Qual seria? Ele não tinha muita escolha: ou seria um cavaleiro lutador ou um monge em jejum e oração. Ele resolveu se retirar do mundo e devotar-se à vida monástica. Aos vinte e três anos, ele entrou para o mosteiro de Cister.

Quando sua família ouviu pela primeira vez sobre sua decisão, ele sofreu muita oposição. Seu pai, Tescelin, e seus dois irmãos, Guido e Geraldo, estavam seguindo o grande Duque da Borgonha em suas guerras, como militares nobres. Mas tal era a força de caráter de Bernardo que ele influenciou seus irmãos, um após o outro, e também sua irmã, a fazerem o voto; e assim toda a família, em um curto período de tempo, desapareceu dentro das paredes do convento.

domingo, 14 de janeiro de 2018

A Segunda Cruzada (1147 d.C.)

Tendo assim dado um relato um pouco minucioso e detalhado sobre a primeira cruzada, precisamos fazer pouco mais do que fornecer algumas datas, com alguns pontos em particular, das sete seguintes cruzadas. As mesmas causas nada razoáveis e não bíblicas, mas empolgantes para o povo, e os mesmos resultados desastrosos, são aparentes em cada uma das expedições. Elas nada mais foram do que várias cópias fracas e mal sucedidas da original.

Os descendentes imediatos dos primeiros cruzados são descritos como dando lugar à vida de facilidade e luxúria, tornando-se assim completamente depravados e efeminados. Mas, por outro lado, os muçulmanos, tendo se recuperado de seu repentino terror e consternação, reuniram grandes forças e assediaram os cristãos com guerras perpétuas. Em 1144, Zengi, príncipe de Mosul, tornou-se mestre de Edessa. Os habitantes foram abatidos, a cidade saqueada e totalmente destruída. A exultação dos muçulmanos não se podia conter: eles ameaçaram a Antioquia, e a coragem dos cristãos começou a afundar. Com lágrimas eles, então, imploraram pelo auxílio dos reis cristãos e dos exércitos da Europa. "Os inimigos da cruz estão avançando", clamavam, "milhares de cristãos foram massacrados, e nenhum será deixado vivo na Terra Santa a menos que a ajuda venha rapidamente".

O Pontífice Romano, Eugênio III, ouviu essas petições, e resolveu provocar uma nova cruzada. Os reis, príncipes e o povo da Europa foram convocados, pelas cartas do papa, para a guerra santa, mas a pregação da cruzada sobre esses países foi delegada ao celebrado São Bernardo, abade de Claraval.  Ele foi um homem de imensa influência, de caráter santo e de grande reputação pela realização de milagres. Na mais brilhante eloquência, ele retratava os sofrimentos dos cristãos orientais, a profanação dos lugares santos pelos infiéis, e o sucesso assegurado dos exércitos do Senhor. Luís VII da França, sua rainha, e um vasto número de seus nobres, tomaram o voto, e devotaram-se à guerra santa. Conrado III, imperador da Alemanha, após resistir por um tempo aos apelos de São Bernardo, com o tempo declarou-se pronto a obedecer ao chamado do serviço de Deus. Muitos dos chefes da Alemanha seguiram o exemplo do imperador ao tomar a cruz -- como era então a frase da vez -- mas era uma cruz sem a verdade nem a graça, a terrível ilusão de Satanás, e perversa prostituição do símbolo sagrado para a cegueira e ruína de milhões.

Assim que esses monarcas tomaram o voto, os preparativos para a expedição foram iniciados. Tropas e suprimentos de todo tipo foram coletados; e no ano de 1147, seus poderosos exércitos, compostos principalmente de franceses, alemães e italianos, e com mais de novecentos mil, avançaram em duas tropas em direção à Palestina. Prosseguindo, como pensaram, e como Bernardo lhes tinha assegurado, sob a sanção dos céus, eles esperavam que agora o golpe final seria dado contra o poder dos muçulmanos, que o reino de Jerusalém seria firmemente estabelecido, e que a paz seria assegurada aos cristãos latinos. Em alguns aspectos, a segunda cruzada diferiu da primeira. Aquela foi o resultado do entusiasmo popular, e esta foi um grande movimento europeu, liderado por dois soberanos, seguidos por seus nobres, e apoiados pela riqueza e influência das nações; mas elas foram igualmente mal sucedidas como o exército de Pedro o Eremita. Eles foram cruelmente traídos pelos traiçoeiros gregos, que estavam com mais medo dos cruzados do que dos muçulmanos. A aproximação de cento e quarenta mil cavaleiros de armadura pesada, com seus atendentes imediatos, no campo, além das tropas de armadura leve, infantaria, padres e monges, mulheres e crianças -- em todos contando quase um milhão -- alarmou tanto os gregos efeminados que o imperador enviou homens exigindo que jurassem que não tinham nenhum desígnio contra o império. Mas o terror deles tomou a forma de hostilidade, e enquanto os cruzados entravam no território imperial, dificuldades erguiam-se por todos os lados.

A história da segunda cruzada na Terra Santa é mais lamentável, vergonhosa, e desastrosa do que a primeira. Em 1149, Conrado e Luís levaram de volta à Europa os poucos soldados que sobreviveram. O que aconteceu com o resto? Seus ossos forravam todas as estradas e desertos sobre os quais eles passaram. Um milhão tinha perecido em menos de dois anos. Altos murmúrios foram ouvidos contra Bernardo, sendo o padre por cuja pregação, profecias e milagres, a cruzada tinha sido principalmente promovida. Mas o astuto abade convenceu o povo de que ele estava certo em tudo o que disse, e que a falha na expedição foi um castigo cabível pelos pecados dos cruzados. Assim vemos que o único efeito da segunda cruzada foi de drenar a Europa de uma grande porção de sua riqueza, e da flor de seus exércitos, sem melhorar a condição dos cristãos no Oriente.

Postagens populares