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domingo, 1 de novembro de 2020

As Vitórias dos Taboritas

Venceslau, Rei da Boêmia, morreu exatamente nessa época de um ataque de apoplexia; e como ele não deixou nenhum herdeiro, a Boêmia foi herdada por seu irmão Sigismundo. Essa mudança foi o sinal para uma guerra aberta por parte dos reformadores. Sigismundo foi execrado como traidor por ter atraído Hus para Constança; ele o havia abandonado a seus inimigos impiedosos, os inimigos da verdadeira fé. Com a fúria do fanatismo religioso, eles demoliram e desfiguraram tudo o que trazia a marca da religião romana. O imperador, o mais rápido possível, voltou sua atenção especial para o reino recém-herdado, mas em lugar de uma recepção leal, sua soberania foi repudiada em todos os lugares. O primeiro exército cruzado foi derrotado pelo vitorioso Žižka, e Sigismundo foi obrigado a fugir das muralhas de Praga.

Os seguidores de Žižka, sendo principalmente camponeses, a princípio não tinham outras armas de guerra além de seus implementos agrícolas, como manguais, clavas, forcados e foices; de modo que Sigismundo os chamou zombeteiramente de debulhadores; mas ele logo sentiu o poder irresistível deles e as feridas mortais que infligiram. Žižka os ensinou a carregar seus implementos com ferro e a conduzir suas carroças rústicas no campo de batalha de modo a servir ao propósito dos antigos carros de guerra. Martinho V, agora seguro em Roma, ouviu à distância sobre Žižka carregando fogo e espada em todas as direções -- massacrando clérigos e monges, queimando e demolindo igrejas e conventos, se vingando dos inimigos da verdadeira fé e erradicando a idolatria, como sua missão divina. Uma bula foi emitida a pedido do imperador, convocando os fiéis a se levantarem para a extirpação do wycliffismo, hussismo e outras heresias, e prometendo indulgências completas para aqueles que participassem do empreendimento pessoalmente ou por procuração. Um exército estimado em cem mil a cento e cinquenta mil foi reunido em quase todos os países europeus.

O espírito dos hussitas foi fortalecido em todas essas ocasiões, seguindo o exemplo da colina de Tabor. Eles celebraram a comunhão, jurando gastar seus bens e seu sangue ao máximo em defesa da chamada Reforma. O cálice eucarístico não era apenas representado nas bandeiras dos taboritas, mas também carregado por seu clero à frente de seus exércitos. Sigismundo entrou na Boêmia à frente das hostes de cruzados, e, determinado a subjugar os rebeldes à obediência, queimou sem escrúpulos os professores hereges, e arrastou outros nas caudas de seus cavalos. Mas a hora da vingança estava próxima. Ardendo de indignação e entusiasmo religioso, Žižka e seus seguidores exasperados surpreenderam os cruzados e os derrotaram com grande massacre em uma colina perto de Praga, que ainda leva seu nome. Uma segunda campanha viu o exército imperial se separar e, em pânico, fugir diante do renomado Žižka. Uma terceira e uma quarta vez o imperador invadiu o país à frente de vastas forças -- em um caso, dizem, duzentos mil homens, mas todas as vezes os exércitos da igreja fugiram em confusão e desgraça diante dos invencíveis taboritas. Em alguns casos, eles perseguiram e massacraram, em vez de simplesmente derrotar, os inimigos de Deus e da verdadeira fé. A crueldade de ambos os lados tornou-se excessiva. Os taboritas que por acaso caíram nas mãos de seus inimigos foram queimados vivos ou vendidos como escravos. Foi uma guerra de vingança, de extermínio, e foi considerado o mais sagrado dos deveres tomar a propriedade e derramar o sangue dos inimigos de Deus.


A Guerra da Boêmia

O martírio dos doutores boêmios havia despertado um sentimento geral de indignação tanto nacional quanto religiosa. O imperador, o papa e os prelados muito em breve teriam que pagar amargamente por sua flagrante injustiça e as queimadas de hereges em Constança. A retribuição se seguiu rapidamente. Quatrocentos e cinquenta e dois nobres e cavaleiros da Boêmia e Morávia anexaram seus selos a uma carta dirigida ao concílio, protestando contra os procedimentos da assembleia e as imputações que haviam sido lançadas sobre a ortodoxia da Boêmia, queimando os mais ilustres de seus professores. Mas o conselho se recusou a ouvir essas objeções razoáveis ​​e decidiu não fazer concessões. Os santos padres, como são profanamente chamados, preocupavam-se muito mais com seus próprios prazeres pecaminosos do que com o bem-estar das pessoas. Embora professamente reunidos para a reforma da igreja, o efeito real de sua estada de quatro anos em Constança foi a desmoralização de toda a cidade e seus subúrbios. Nunca foi visto nada igual à licenciosidade e devassidão desse concílio. 

No ano de 1418, pouco antes da dissolução do concílio, Martinho V, agora o único e indiscutível papa, emitiu uma bula de cruzada contra os hereges contumazes, exigindo que todas as autoridades, eclesiásticas e civis, trabalhassem pela supressão das heresias de Wycliffe, Hus e Jerônimo. A questão agora estava bastante comprometida com a decisão pelo uso da espada. O cardeal João, de Ragusa, foi enviado como legado à Boêmia. Ele era um homem violento e falava em reduzir o país pelo fogo e pela espada. Em seu caráter de legado, ele queimou várias pessoas que se opunham à sua autoridade. Os boêmios, por causa dessas atrocidades, ficaram furiosos. Os seguidores de Hus se uniram e se tornaram um partido forte. Eles se comprometeram solenemente a cumprir os princípios de reforma de seu chefe martirizado. Hus havia condenado veementemente a prática da igreja em reter o cálice dos leigos: por isso o adotaram como o símbolo de sua comunidade, exibindo o cálice eucarístico em suas bandeiras. Chefiados por Žižka, o caolho, um cavaleiro de grande gênio militar, eles se moviam pelo país, em todos os lugares obrigando a administração do sacramento em ambos os tipos -- o vinho e também o pão. 

Tendo as igrejas de Praga sido recusadas ao clero que seguia as doutrinas de Hus, eles começaram a procurar lugares onde pudessem desfrutar da liberdade de culto. Uma grande reunião dos hussitas foi convocada no mês de julho de 1419, em uma colina alta, ao sul de Praga, onde foram formalmente unidos pela celebração da comunhão ao ar livre. Deve ter sido uma visão imponente, mas, infelizmente, a sequência de sua história desenha uma sombra escura sobre ela. No cume espaçoso dessa colina, trezentas mesas foram espalhadas e quarenta e duas mil pessoas, consistindo de homens, mulheres e crianças, tomaram o sacramento em ambos os tipos. Uma festa de amor seguiu a comunhão, na qual os ricos compartilharam com os pobres, mas não era permitido beber, dançar, jogar ou ouvir música. Lá o povo acampou em tendas e, gostando do uso de nomes das escrituras, chamou-o de Monte Tabor, do qual obtiveram o nome de taboritas. Eles falavam de si mesmos como o povo escolhido de Deus e estigmatizavam seus inimigos, os católicos romanos, como amalequitas, moabitas e filisteus. 

O luxo, o orgulho, a avareza, a simonia e outros vícios do clero foram denunciados na colina de Tabor, e Žižka e seus seguidores exortaram os comungantes a se engajarem na obra de reforma da igreja. Esta grande assembleia, sob Žižka, marchou primeiro para Praga, onde chegaram à noite. No dia seguinte, um clérigo hussita, caminhando à frente de uma procissão com um cálice na mão, foi atingido por uma pedra ao passar pela prefeitura, onde os magistrados estavam sentados. Assim insultados, muitos deles correram furiosamente para o salão; seguiu-se uma luta feroz: os magistrados foram derrotados, alguns foram mortos, alguns fugiram e alguns foram atirados pelas janelas. O alarme se espalhou, o povo da velha religião se levantou em armas, os reformadores lutaram contra eles como inimigos da verdadeira fé. Žižka e seus seguidores proclamaram-se servos de Deus e sua missão era a reforma de Sua igreja. Mas, infelizmente, eles começaram uma obra de destruição em vez de reforma. Conventos foram atacados e saqueados, monges foram massacrados, igrejas e mosteiros foram reduzidos a ruínas; imagens, órgãos, quadros e todos os instrumentos de idolatria, como eles chamavam, foram quebrados em pedaços. O movimento se espalhou para outros lugares, e uma guerra desoladora, que continuou por muitos e muitos anos, se seguiu.

domingo, 4 de outubro de 2020

Wycliffe e as Bulas Pontifícias

Wycliffe estava novamente em liberdade. As severidades que seus perseguidores tinham planejado contra ele não foram infligidas, e ele continuou a pregar e instruir o povo com zelo e coragem inabaláveis. Mais ou menos nessa época, havia dois papas (ou antipapas); um em Roma e um em Avignon. Esse fato é mencionado na história como "O Grande Cisma do Ocidente" e caricaturado por alguns escritores como o Anticristo fendido, ou de duas cabeças. Por qual das cabeças a alegada sucessão apostólica fluiu, deixamos para o leitor julgar por si mesmo. Wycliffe denunciou ambos os papas como anticristos e encontrou forte simpatia nos corações e mentes das pessoas. Seguiram-se as cenas mais vergonhosas. O pontífice de Roma proclama guerra contra o pontífice de Avignon. Uma cruzada é pregada em favor do primeiro. As mesmas indulgências são concedidas aos cruzados da antiguidade que foram para a Terra Santa. Orações públicas são oferecidas, por ordem do primaz, em todas as igrejas do reino, pelo sucesso do pontífice de Roma contra o pontífice de Avignon. Os bispos e o clero são chamados a impor a seus rebanhos o dever de contribuir para esse “propósito sagrado”. Sob o comando do capitão mitrado, Spencer, o jovem bispo marcial de Norwich, os cruzados avançaram. Eles tomaram Gravelines e Dunquerque, na França; mas, que terrível! Esse exército do papa, chefiado por um bispo inglês, superou a desumanidade comum da época. Homens, mulheres e crianças foram feitos em pedaços em um vasto massacre. O bispo carregava uma enorme espada de duas mãos, com a qual parece ter abatido com grande boa vontade o rebanho inflexível do papa rival em Avignon.

Essa expedição só poderia terminar em vergonha e desastre. Isso abalou o papado em seus alicerces e fortaleceu grandemente a causa do reformador. De 1305 a 1377, os papas foram pouco mais do que vassalos dos monarcas franceses em Avignon; e desde então até 1417, o próprio papado foi despedaçado pelo grande cisma. Mas os lacaios do papa continuaram ávidos e constantes em sua busca pelo herege. Dezenove artigos de acusação contra ele foram apresentados a Gregório XI. Em resposta a essas acusações, cinco bulas foram despachadas para a Inglaterra, três para o arcebispo, uma para o rei e uma para Oxford, ordenando o inquérito sobre as doutrinas errôneas de Wycliffe. As acusações contra ele não eram sobre suas opiniões contra o credo da igreja, mas contra o poder do clero. Ele foi acusado de reviver os erros de Marsílio de Pádua e John Gaudun, os defensores do monarca secular contra o papa.

Wycliffe foi citado uma segunda vez para comparecer perante os mesmos delegados papais, mas nesta ocasião não foi na Catedral de São Paulo, mas em Lambeth. Ele não tinha mais o duque de Lancaster e o conde-marechal ao seu lado. Ele confiava no Deus vivo. "As pessoas pensaram que ele seria devorado, sendo levado para a cova dos leões", e muitos dos cidadãos de Londres forçaram-se a entrar na capela. Os prelados, vendo seus olhares e gestos ameaçadores, ficaram alarmados. Mas mal os procedimentos começaram, quando uma mensagem foi recebida da mãe do jovem rei -- a viúva do Príncipe Negro -- proibindo-os de prosseguir com qualquer sentença definitiva a respeito da doutrina ou conduta de Wycliffe. "Os bispos", diz Walsingham, o advogado papal, "que se professaram determinados a cumprir seu dever apesar das ameaças ou promessas, e até mesmo com risco de vida, foram como juncos sacudidos pelo vento e ficaram tão intimidados durante o exame do apóstata, que seus discursos eram suaves como óleo, para a perda pública de sua dignidade e para o dano de toda a igreja. E quando Clifford pomposamente entregou sua mensagem, eles ficaram tão tomados de medo que qualquer um pensaria que eram como um homem que não ouve e em cuja boca não há reprovação. Assim, esse falso mestre, esse completo hipócrita, escapou da mão da justiça e não pôde mais ser convocado perante os mesmos prelados, uma vez que a comissão deles expirou com a morte do papa Gregório XI."*

{* Milner, vol. 3, pág. 251.}

A morte de Gregório e o grande cisma no papado se combinaram, na boa providência de Deus, para livrar Wycliffe das mãos cruéis da perseguição, que sem dúvida o havia marcado como sua vítima. Ele, portanto, retornou às suas ocupações anteriores e, por meio de seus discursos de púlpito, suas palestras acadêmicas e seus vários escritos, trabalhou para promover a causa da verdade e da liberdade. Ele também organizou nessa época um grupo itinerante de pregadores, que deveriam viajar pela terra pregando o evangelho de Jesus Cristo, aceitando hospitalidade pelo caminho e confiando no Senhor para suprir todas as suas necessidades. Eles eram chamados de "sacerdotes pobres" e, não raro, eram perseguidos pelo clero; mas a simplicidade e seriedade desses missionários atraíam multidões de pessoas comuns ao seu redor.

domingo, 15 de outubro de 2017

Pedro, o Eremita

Os sentimentos dos cristãos europeus estavam naturalmente excitados pelos relatos sobre as crueldade e ultrajes aos quais seus irmãos no Oriente estavam sendo sujeitos pelos infiéis conquistadores da Terra Santa; e isto deu uma aparência de justiça à ideia de uma guerra religiosa.

No ano 1093, Pedro, um nativo de Amiens e um monge peregrino, visitou Jerusalém. Seu espírito ficou muito agitado pela visão das indignidades que os cristãos tinham que suportar. O sangue do franco tornou-se como fogo quando viu os sofrimentos e degradações de seus irmãos. Ele falou com Simeão, o patriarca de Jerusalém, sobre o assunto de sua libertação, mas o desesperado Simeão deplorou a desesperança de sua condição, uma vez que os gregos, os protetores naturais dos cristãos na Síria, estavam muito fracos para prestar-lhes ajuda. Pedro então prometeu-lhe a ajuda dos latinos. "Levantarei as nações marciais da Europa em sua causa", ele exclamou, e creu que seu voto tinha sido ratificado no céu. Quando prostrado no templo, ele ouviu 'a voz do Senhor Jesus', dizendo-lhe: "Levante, Pedro, e siga adiante para tornar conhecidas as tribulações do meu povo; a hora se aproxima para a libertação de meus servos, para a recuperação dos lugares sagrados". Era um hábito conveniente naqueles dias, para monges em solidão austera e com a imaginação excitada, acreditar no que quisessem acreditar, e então serem confirmados por meio de sonhos e revelações sobre o que quer que acreditassem.

Pedro agora acreditava em sua própria missão, e isso foi um grande meio para que os outros também cressem nisso. Ele apressou-se a Roma. O papa, Urbano II, ficou infectado por seu fervor, e deu total sanção à sua pregação sobre a libertação imediata de Jerusalém. O eremita, tendo então a sanção tanto 'do céu' quanto do papa, partiu em sua missão. Após atravessar a Itália, ele cruzou os Alpes e entrou na França. Ele é descrito como baixo em estatura, magro, de pele escura, mas com um olho de fogo. Ele andava em uma mula com um crucifixo em sua mão, sua cabeça era careca, e andava descalço; sua roupa era um manto longo com uma corda, e uma capa de eremita do mais grosseiro material. Ele pregava aos altos e baixos, em igrejas e em estradas, e nos mercados. Sua rude e brilhante eloquência era o que agitava o coração do povo, pois ele também vinha do povo. Ele apelava para cada paixão; à indignação e piedade, ao orgulho do guerreiro, à compaixão do cristão, ao amor dos irmãos, ao ódio dos infiéis; à suja profanação da terra que tinha sido "santificada" pelo nascimento e vida do Redentor. "Por que", ele exclamava veementemente, "os incrédulos deveriam ser permitidos por mais tempo a reter a custódia de tais territórios cristãos como o Monte das Oliveiras e o Jardim de Getsêmani? Por que deveríamos permitir que os seguidores não batizados de Maomé, aqueles filhos da perdição, poluam com pés hostis o solo sagrado que foi testemunha de tantos milagres, e ainda forneceu tantas relíquias que manifestaram poder sobre-humano? Ossos de mártires, vestes de santos, lascas da cruz, espinhos da coroa, estavam todos prontos para serem recolhidos pelo sacerdócio fiel que lideraria a expedição. Que o solo de Sião seja purificado com o sangue dos infiéis que abateremos."*

{* Eighteen Christian Centuries, de White, p. 246.}

Quando as palavras e o fôlego lhe falhavam, ele chorava, gemia, batia nos peitos e levantava um crucifixo, como se o Próprio Cristo estivesse implorando-lhes a unirem-se ao 'exército de Deus'. Os delírios de seu frenesi tiveram um efeito prodigioso sobre todas as classes em todas as terras. Homens, mulheres, e crianças aglomeravam-se para tocar em suas vestes; até mesmo os cabelos que caíam de sua mula eram recolhidos e guardados como relíquias. Em um curto período de tempo, ele retornou ao papa, assegurando-lhe que em todo lugar seus apelos tinham sido recebidos com entusiasmo, de modo que ele dificilmente poderia impedir seus ouvintes de tomar armas e segui-lo até a Terra Santa. Nada mais era necessário além de um plano, de líderes e organização, e assim o papa ousadamente resolveu realizar esse grande empreendimento.

domingo, 2 de abril de 2017

A Espada de Carlos Magno ou o Batismo

O objetivo professo de Carlos Magno era estabelecer o cristianismo nas partes remotas da Germânia, mas deve-se sempre lembrar que ele usou de meios muito violentos para cumprir seu fim. Milhares foram forçados às águas do batismo para escapar de uma morte cruel. "A espada ou o batismo" eram os termos usados pelo conquistador. Foi promulgada uma lei que estabelecia a pena de morte contra a recusa do batismo. Ele não podia oferecer condições de paz, nem entrar em qualquer tratado, no qual o batismo não fosse a principal condição. A conversão ou o extermínio foi a palavra de ordem dos francos. E, embora a antiga religião pudesse não estar tão arraigada na consciência do saxão, ele não podia ver nada melhor na nova; pois, para sua mente, o batismo estava identificado à escravidão e o cristianismo à submissão a um jugo estrangeiro. Submeter-se ao batismo era renunciar, não apenas à sua antiga religião, mas à sua liberdade pessoal.

Com tais sentimentos anticristãos e desumanos, a guerra seguiu em frente, como já mencionamos, por 33 anos. À frente de seus exércitos superiores, Carlos Magno oprimiu as tribos selvagens, que eram incapazes de confederar-se para sua segurança comum; conta-se que ele nem mesmo encontrou um adversário igual em números, em disciplina ou em armas. Mas, após uma luta de derramamento de sangue incalculável, e de quase sem igual obstinação e duração, os números, a disciplina e o valor dos francos prevaleceu com o tempo sobre os indisciplinados e desconsiderados esforços dos saxões. "O remanescente de trinta campanhas de indistinta matança", diz Greenwood, "e generalizada expatriação aceitou o batismo e tornou-se permanentemente incorporado ao império dos francos e ao cristianismo. Abadias, monastérios e casas religiosas de todos os tipos se espalharam por toda as partes do território conquistado, e as novas igrejas* eram supridas por ministros da escola de Bonifácio -- uma escola que não admitia qualquer distinção entre a lei de Cristo e a lei de Roma."

{* N. do T.: Aqui no sentido de edifícios religiosos, e não no sentido bíblico do corpo de Cristo ou de uma assembleia reunida somente ao nome de Cristo.}

O batismo era a única segurança e garantia de paz que os francos aceitariam pela submissão dos saxões. E assim foi -- e quão triste e humilhante é essa relação! -- quando a conquista foi concluída, e finda a carnificina, que os padres entraram em campo. O ofício deles era batizar os vencidos. Milhares dos bárbaros foram, assim, forçados, na ponta da espada, ao que os padres chamavam de águas regeneradoras do batismo. Mas, para os saxões, o batismo significava nem mais nem menos do que a renúncia à sua religião e sua liberdade. A consequência foi que, assim que os exércitos de Carlos se retiraram, os infatigáveis saxões voltaram a se erguer, atravessando os imponentes limites do império e devastando tudo por onde passavam. Em sua fúria ardente e amarga vingança eles cortaram cruzes, queimaram "igrejas", destruíram monastérios, mataram seus prisioneiros, sem respeitar idade nem sexo, até que todo o país pareceu estar envolvido em chamas e inundado de sangue. Dizem que tais revoltas eram muitas vezes provocadas pela linguagem insolente, e ainda mais pelo comportamento ofensivo dos monges missionários, e pela severa avareza com a qual exigiam seus dízimos. Mas tais explosões da parte dos saxões eram seguidas por uma nova invasão e matança implacável pelos francos, até que tribo após tribo cedeu aos braços conquistadores de Carlos Magno. Em uma ocasião, após uma severa revolta, Carlos massacrou,  a sangue frio, 4500 guerreiros valentes que tinham se rendido. Esse cruel e covarde abuso de poder deixou uma mancha escura e indelével em sua história, que nenhuma desculpa pode jamais remover. Mesmo o historiador cético alude a ela de forma muito verdadeira e tocante. "Em um dia de igual retribuição", diz ele, "os filhos de seu irmão Carlomano, o príncipe merovíngio de Aquitânia, e os 4500 saxões que foram decapitados no mesmo local, terão algo a alegar contra a justiça e humanidade de Carlos Magno. Seu tratamento para com os vencidos saxões foi um abuso do direito de conquista".

A Grande Época nos Anais do Papado

Como o império de Carlos Magno possui, de um modo peculiar, conexão com a história da igreja, e forma uma grande época nos anais da Sé Romana, ele exige uma consideração mais completa. O catolicismo romano quase devia tanto ao grande príncipe quanto o islamismo devia ao grande profeta árabe (Maomé) e seus sucessores. "As guerras saxônicas de Carlos Magno", diz Milman, "que acrescentou quase toda a Germânia (atual Alemanha) aos seus domínios, eram declaradamente guerras religiosas. Se Bonifácio era o "apóstolo" cristão, Carlos Magno era o "apóstolo" maometano [N. do T.: no sentido de que agia como Maomé na conquista dos povos pela violência] do evangelho. O objetivo declarado de suas invasões era a extinção do paganismo, a sujeição à fé cristã, ou o extermínio. O batismo era o sinal de subjugação e fidelidade, e os saxões o aceitavam ou rejeitavam, de acordo com o estado de submissão ou revolta em que se encontravam. Essas guerras eram inevitáveis; eram nada mais que a continuação da grande luta travada, por séculos, entre os bárbaros do Norte e do Oriente contra os civilizados do Sul e do Ocidente. A diferença é que, agora, a população romana e cristã, revigorada pela grande infusão de sangue teutônico, em vez de esperar pela agressão, tinha se tornado a agressora. A maré de conquista se invertia; os súditos dos reinos ocidentais, do império ocidental, em vez de esperarem para ver suas casas invadidas por hordas de invasores ferozes, agora ousadamente marchavam ao coração do país de seus inimigos, penetravam em suas florestas, cruzavam seus pântanos, e plantavam suas cortes feudais de justiça, suas igrejas e seus monastérios nas regiões mais remotas e selvagens, desde o Elba até as margens do Báltico."

Os saxões estavam divididos em três tribos principais: os ostefalianos, os vestefalianos e os angarianos. Cada clã, de acordo com o antigo uso teutônico, consistia em nobres, homens livres e escravos; mas, às vezes, a nação inteira se encontrava em uma grande convenção armada. Os saxões desprezavam e detestavam os francos romanizados, e os francos consideravam os saxões bárbaros e pagãos. Durante 33 anos, o poderoso Carlos empenhou-se em subjugar essas hordas selvagens de saxões. "A área do país habitada por essas tribos", diz Greenwood, "compreendia a totalidade do que é conhecido como o círculo moderno da Vestfália, e a maior porção da Baixa Saxônia, estendida do rio Lippe até o Weser e o Elba; limitada ao norte pelas tribos aparentadas, os jutos, os anglos e os danos; e ao leste de origem eslava, que tinha gradualmente avançado sobre as mais antigas raças teutônicas da Germânia Oriental". Mas devemos nos limitar principalmente ao aspecto religioso dessas guerras; ainda assim, é interessante, neste momento, estudar esses registros antigos, uma vez que acabamos de testemunhar a conclusão da grande guerra franco prussiana de 1870-71 {* N. do T., este livro foi escrito no século XIX} entre os descendentes dos francos e dos germanos da antiguidade.

domingo, 5 de março de 2017

Os Paulicianos de Rebelam Contra o Governo

Do mesmo modo que alguns dos albigenses, hussitas da Boêmia e calvinistas da França, os paulicianos da Armênia e das províncias adjacentes determinaram-se a uma resistência mais decidida aos seus perseguidores. Esta foi a triste falha deles, e o triste fruto de dar ouvidos às sugestões de Satanás. Por quase duzentos anos eles tinham sofrido como cristãos, adornando o evangelho por uma vida de fé e paciência. Até onde podemos julgar, eles parecem ter mantido a verdade através de um longo curso de sofrimento, no nobre, embora passivo, espírito de conformidade a Cristo. Mas a fé e a paciência falharam com o tempo, e eles se rebelaram abertamente contra o governo. Aconteceu assim:

Carbeas
, um oficial do alto escalão no serviço imperial, ao ouvir que seu pai tinha sido empalado pelos inquisidores católicos, renunciou a sua lealdade ao império, e com cinco mil companheiros, buscou um refúgio entre os sarracenos. O califa acolheu com prazer os desertores, e deu-lhes permissão para se estabelecerem dentro de seu território. Carbeas construiu e fortificou a cidade de Tefrique, que se tornou a sede dos paulicianos. Eles naturalmente se afluíram para esse novo lar, buscando um refúgio contra as leis imperiais. Eles logo se tornaram uma poderosa comunidade. Sob as ordens de Carbeas, a guerra foi travada contra o império, e mantida com vários êxitos por mais de trinta anos; mas como os detalhes seriam mais deprimentes do que interessantes, preferimos nos abster deles.

domingo, 8 de janeiro de 2017

O Segundo Decreto é Publicado

O segundo decreto era tão avassalador que os oficiais do império, conta-se, foram até mesmo além de suas ordens. As mais sacras estátuas e imagens foram, em todo lugar, impiedosamente quebradas, rasgadas em pedaços, ou publicamente lançadas nas chamas debaixo dos olhos dos enfurecidos adoradores. "Correndo risco de morte", diz Greenwood, "homens, mulheres e até crianças correram para a defesa dos objetos como se fossem tão queridos para eles como a própria vida. Eles atacavam e matavam os oficiais do império envolvidos na obra de destruição; estes, apoiados pelas tropas regulares, retaliavam com igual ferocidade; e as ruas da metrópole exibiam tal cena de indignação e abate como só pode ser proveniente de paixões religiosas envenenadas. Os líderes do tumulto foram, a maior parte, condenados à morte no local; as prisões se encheram totalmente; e multidões, após sofrerem várias punições corporais, foram transportadas a lugares de exílio".*

{* Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 474}

O populacho ficou então excitado à fúria; mesmo a presença do imperador não os intimidava. Os oficiais do império tinham ordens de destruir uma estátua do Salvador que ficava sobre o Portão de Bronze do palácio imperial, e que era conhecida pelo nome de Segurança. Esta imagem era famosa por seus milagres, e recebia grande veneração do povo. Multidões de mulheres de reuniram em torno do lugar e ansiosamente suplicaram ao soldado que poupasse sua imagem favorita. Mas ele subiu na escada, e com seu machado atingiu o rosto que elas tão frequentemente contemplavam, e que, pensavam elas, benignamente olhava para elas. Os céus não interferiram, como esperavam; mas as mulheres tomaram a escada, derrubaram o ímpio oficial, e o cortaram em pedaços. O imperador enviou uma guarda armada para suprimir o tumulto; a multidão se uniu às mulheres e um assustador massacre se sucedeu. "A Segurança" tinha sido derrubada, e seu lugar foi preenchido com uma inscrição na qual o imperador dava vazão a sua inimizade contra as imagens.*

{* J. C. Robertson, vol. 2, p. 83; Milman, vol. 2, p. 156.}

A execução das ordens imperiais foram rejeitadas em todos os lugares, tanto na capital quanto nas províncias; o entusiasmo popular era tão grande que só poderia ser debelada pelos mais fortes esforços do poder civil e militar. Paixões se acendiam dos dois lados, que naturalmente resultaram na mais ousada rebelião e na mais violenta perseguição.

Meca, a Capital do Islã

Maomé tornou-se então o senhor de Meca. A unidade de Deus era proclamada, assim como sua própria missão profética, do mais alto pináculo da mesquita. Os ídolos foram quebrados em pedaços. O velho sistema da idolatria afundou perante o medo de seus braços e da simplicidade exterior de seu novo credo. O próximo passo importante na política do profeta foi assegurar a unidade religiosa absoluta de toda a Arábia. Por este meio, os velhos feudos hereditários das tribos e raças desapareceram, e todos se transformaram em um exército religioso unido contra os infiéis. A guera estava então declarada contra todas as formas de incredulidade, o que era especialmente uma declaração de guerra contra a Cristandade, e uma determinação expressa de propagar o maometismo pelo poder de sua espada.

Maomé torna-se então um soberano independente. A Arábia, liberta dos ídolos, abraça a religião do Islã. Mas, embora o profeta fosse então um príncipe secular e um guerreiro bem-sucedido, ele não negligenciou seus deveres de sacerdote. Ele constantemente conduzia as devoções de seus seguidores, fazia as orações públicas, e pregava nos festivais semanais às sextas-feiras. Ele blasfemamente assumiu ser profeta, sacerdote e rei. A mistura, a ilusão, é a inspiração do inferno; é como a obra-prima de Satanás enviada do reino das trevas. O fanatismo de seus seguidores foi impulsionado pelos incentivos à pilhagem e a gratificação de toda a paixão maligna. A apropriação de todas as mulheres cativas foi reconhecida como uma das leis da guerra, e a recompensa oferecida pela coragem. As máximas inculcadas em todos os fiéis eram tais como: "Uma gota de sangue derramada na causa de Deus, ou uma noite passada em armas, é de mais valia do que dois meses empregados ao jejum e oração. A qualquer que cai em combate, seus pecados são perdoados; no dia do juízo suas feridas serão resplandescentes como o escarlate e odoríferas como o almíscar: e a perda de seus membros serão recompensadas pelas asas de anjos e querubins". O grito de guerra do intrépido Khaled era: "Lutem, lutem e não temam! O paraíso, o paraíso, está sob a sombra de suas espadas! O inferno com seu fogo está atrás daquele que foge da batalha, o paraíso está aberto àquele que cai em batalha". Assim animados, os exércitos muçulmanos se acendiam com entusiasmo; e, sedentos pelos despojos de vitória aqui e pelo paraíso sensual que viria, eles corriam sem medo para a batalha.

A fundação do império árabe estava então estabelecida. Maomé convocou, não apenas os mesquinhos potentados dos reinos vizinhos, mas também os dois grandes poderes do mundo mais civilizado, o rei da Pérsia e o Imperador do Oriente, a se submeterem à sua supremacia religiosa. Conta-se que Heráclito receber a comunicação com respeito, mas Cosroes II, o persa, desdenhosamente rasgou a carta em pedaços: o profeta, ao ouvir sobre o ato, exclamou: "É assim que Deus vai rasgar o reino, e rejeitar as súplicas de Cosroes". E assim aconteceu; o reino da Pérsia foi reduzido, em um curto período de tempo, pelos exércitos maometanos a apenas algumas comunidades dispersas. Mas embora o círculo do Islã estivesse se alargando, o seu centro estava morrendo. Tenho seguido seu filho mais velho até a sepultura com lágrimas e suspiros, o profeta fez sua peregrinação de despedida a Meca, e morreu no ano 632, aos 64 anos de idade. Ao que parece ele não tinha sido tocado nem um pouco pelo remorso em seu leito de morte, mas o sangue que ele derramou e as multidões que ele enganou o seguirão até o julgamento final.

A missão maligna do falso profeta foi cumprida. Ele tinha organizado a mais terrível confederação que o mundo já viu. No curto espaço de dez anos ele plantou no Oriente uma religião que se enraizou tão firmemente que, entre todas as revoluções e mudanças de doze séculos, ela ainda exerce uma poderosa influência controladora sobre as mentes e consciências de mais de 100 milhões de seres humanos.*

{* N. do T.: este livro foi escrito no século XIX, portanto os números hoje em dia provavelmente são ainda maiores.}

domingo, 24 de julho de 2016

Os Filhos de Constantino (de 337 a 361 d.C.)

Constantino, o Grande, foi sucedido por seus três filhos, Constantino II, Constâncio e Constante. Eles foram educados na fé do evangelho, e tinham sido nomeado Césares por seu pai, e em sua morte eles dividiram o império entre eles. Constantino II ficou com a Gália, Espanha e Grã-Bretanha; Constâncio ficou com as províncias asiáticas e com a capital, Constantinopla; e Constante ficou com a Itália e a África. O início do novo reinado foi caracterizado -- como era habitual naqueles tempos -- pela morte dos parentes que podiam um dia se provarem rivais ao trono. Mas juntamente com os velhos e usuais ciúmes e hostilidades políticas, um novo elemento agora aparece -- a controvérsia religiosa.

O filho mais velho, Constantino, era favorável aos católicos, e sinalizou o começo de seu reinado chamando Atanásio de volta, e colocando-o novamente como bispo de Alexandria. Mas em 340 Constantino II foi morto em uma invasão da Itália, e Constante tomou posse dos domínios de seu irmão, se tornando, assim, o soberano de dois terços do império. Ele era favorável às decisões do concílio de Niceia, e aderiu com firmeza à causa de Atanásio. Constâncio, sua imperatriz e a corte eram parciais ao arianismo. E assim a guerra religiosa começou entre os dois irmãos -- entre o Oriente e o Ocidente --- e foi levada adiante sem justiça ou humanidade, o que não tinha nada a ver com o espírito pacífico do cristianismo. Constâncio, como seu pai, interferiu tanto nos assuntos da igreja, que pretendia ser um teólogo, e durante todo o seu reinado o império foi incessantemente agitado pela controvérsia religiosa. Os concílios se tornaram tão frequentes que estabelecimentos públicos eram constantemente empregados para abrigar os bispos em contínua viagem; de ambos os lados, concílios foram reunidos para se oporem a outros concílios. Mas como o principal evento do período, assim como a linha prateada da graça de Deus, está conectada a Atanásio, retornaremos a sua história.

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