domingo, 7 de janeiro de 2018

Jerusalém nas Mãos dos Cristãos

Jerusalém, que esteve sob domínio muçulmano desde a conquista de Omar em 637, passou novamente para as mãos de cristãos; e oito dias depois desse memorável evento os chefes vitoriosos prosseguiram à eleição de um rei. Pela voz livre e unânime do exército, Godofredo de Bulhão foi proclamado o mais digno campeão da Cristandade e rei de Jerusalém. Mas o humilde e piedoso peregrino, enquanto aceitava o lugar de responsabilidade, recusou o nome e as insígnias da realeza. Como poderia ele ser chamado rei e vestir uma coroa de ouro, quando o Rei dos reis, seu Salvador e Senhor, tinha usado uma coroa de espinhos? Ele se contentou com o título mais humilde de Defensor e Barão do Santo Sepulcro.

Mal tinha Godofredo sentado em seu trono quando foi novamente convocado para campo. Uma grande força de sarracenos do Egito avançavam para vingar a perda de Jerusalém. Mas novamente os cruzados foram vitoriosos no que é chamada a Batalha de Ascalão. Uma vez considerada segura sua posição na Cidade Santa, a maior parte do exército se preparou para voltar à Europa. Após subirem na colina do Calvário, em meio a altos cânticos de hinos do clero, banhando com lágrimas o solo santo, banhando-se no Jordão, carregando com eles ramos de palmeiras de Jericó, e inumeráveis relíquias, eles se prepararam para voltar para casa. Dentre os que retornaram estava Pedro o Eremita, que passou o resto de seus dias em um monastério fundado por ele próprio, em Huy, perto de Liège, até sua morte em 1115.

Trezentos cavaleiros e dois mil soldados a pé foi tudo o que Godofredo reteve para a defesa da Palestina. Mas o recém-nascido reino logo seria atacado por um novo inimigo, e um com quem estamos muito bem familiarizados -- um padre voraz de Roma. No nome do papa, ele foi nomeado Patriarca de Jerusalém, e reivindicou tantas riquezas e propriedades para a Igreja que o Estado foi deixado, de fato, pobre. O piedoso Godofredo submeteu-se; tanto ele como Boemundo receberam investidura do padre, e assim o cetro de Jerusalém caiu em suas mãos, ou melhor, foi confiscado pelo ambicioso papa. Cansado com todos os seus labores, e sentindo que sua grande obra estava então realizada, Godofredo estava pouco disposto a lutar contra o padre, e assim permitiu-lhe usurpar e colocar-se sobre a jurisdição, tanto nos assuntos espirituais quanto seculares. Os cristãos gregos foram perseguidos pelos latinos como cismáticos; e, é claro, a brecha se alargou entre o Oriente e o Ocidente.

Após estabelecer a língua francesa, e estabelecer a fundação de um código de leis, mais tarde famosa sob o nome de "Assizes de Jerusalém", e mantendo sua dignidade por pouco mais de um ano, o bravo e vitorioso Godofredo -- o verdadeiro herói da cruzada -- morreu em 17 de agosto, em 1100 d.C.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

O Cerco de Jerusalém (1099 d.C.)

Em vez de marcharem imediatamente para Jerusalém, enquanto estavam tão animados e fortalecidos pela vitória, e seus inimigos dominados, eles ociosamente gastaram seu tempo desfrutando dos luxos da Síria por quase dez meses, e, quando as ordens de marcha foram dadas no mês seguinte de maio, apenas uma pequena parte do uma vez poderoso exército sobrou. Supõe-se que trezentos mil chegaram à Antioquia, mas a fome, a doença e a espada tinham reduzido a força deles para pouco mais de quarenta mil. As relíquias do exército partiram no mês de maio. Enquanto se aproximavam do objetivo de sua longa e perigosa jornada, e reconheciam os lugares sagrados, tais como Tiro, Sidom, Cesareia, Lida, Emaús e Belém, eles não podiam conter seu entusiasmo. Mas quando alcançaram uma elevação que lhes davam uma visão completa da cidade santa, um grito de "Jerusalém! Jerusalém! Deus o quer! Deus o quer!" explodiu. Todos se lançaram de joelhos e beijaram o solo sagrado. As cenas da história do evangelho encheram suas mentes com um arrebatado deleite. Mas Jerusalém estava ainda nas mãos dos infiéis, e eles estavam desprovidos dos recursos necessários para o assalto.

O cerco durou quarenta dias, mas foram quarenta dias de grande sofrimento para os sitiadores; especialmente pela sede feroz produzida pelo sol de verão daquele país seco. O ribeiro de Cédron estava seco; as cisternas tinham sido destruídas ou envenenadas; a provisão deles se acabou; de fato, tão grande era a angústia deles, que estavam a ponto de renderem-se em desespero. Mas, como em ocasiões anteriores, o alívio chegou. A superstição veio ao resgate. Godofredo viu no Monte das Oliveiras um guerreiro celestial balançando seu brilhante escudo como um sinal para outro assalto. Com renovado ardor militar, eles atacaram os incrédulos, e, após uma luta feroz, dominaram a cidade santa. Os historiadores concordam em dizer que, em 15 de julho de 1099, uma sexta-feira, às três da tarde, o dia e hora da paixão do Salvador, Godofredo de Bulhão foi vitorioso nas muralhas de Jerusalém. Ele saltou para a devota cidade, acompanhado de Tancredo, e seguido pelos soldados, que encheram cada rua da cidade de massacres.

"Os cruzados", diz Robertson, "inflamados à loucura pelo pensamento dos males inflingidos a seus irmãos e pela obstinada resistência dos sitiados, não pouparam nem o velho, nem a mulher, nem a criança. Setenta mil muçulmanos foram massacrados; muitos dos que tinham recebido uma promessa de vida dos líderes foram mortos pelos soldados. O templo e o alpendre de Salomão ficou cheio de sangue até a altura do joelho de um cavalo e, em meio à fúria geral contra os inimigos de Cristo, os judeus foram queimados em sua sinagoga. Godofredo não tomou parte nessas atrocidades, mas imediatamente após a vitória, em vestes de peregrino, dirigiu-se à igreja do santo sepulcro para derramar seus agradecimentos por ter sido permitido a alcançar a cidade santa. Muitos seguiram seu exemplo, resignando-se de suas obras selvagens por lágrimas de penintência e gozo, e oferecendo, no altar, o espólio que eles tinham conquistado; mas, por uma revolta de sentimentos naturais para um estado de grande excitação, eles logo voltaram à sua obra selvagem, e por três dias correu sangue em Jerusalém."*

{* Church History, de Robertson, vol. 2, p. 641. White's Eighteen Christian Centuries.}

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O Cerco de Antioquia

No dia 18 de outubro de 1097, os "guerreiros da cruz" sitiaram a Antioquia, onde os discípulos foram pela primeira vez chamados cristãos, e que logo depois tornou-se o centro dos labores missionários do grande apóstolo. Mas que mudança de espírito, objetivo e modos do seu assim chamado sucessor -- daquele que assumia o blasfemo título de vigário de Cristo, mas em quem cuja porta a culpa e o derramamento de sangue desta, a maior de todas as ilusões populares, para sempre repousará. Jezabel ainda pode reinar tanto na igreja quanto no Estado, e amigos, assim como inimigos, devem ser sacrificados para atingir seu objetivo e gratificar sua ambição. Mas o dia rapidamente se aproxima quando a requisição pelo sangue será feita, e o juízo será dado, de acordo com os motivos, assim como com as ações. O testemunho agradecido a Deus, que saiu da Antioquia no primeiro século, é tão simples e verdadeiro agora como era então, e de igual autoridade sobre o coração e a consciência, não obstante o fluxo corrupto de dez mil que professamente fluíam da mesma fonte. É na doutrina dos apóstolos que temos que confiar, e não na tradição dos Pais. Em todas as épocas o credo cristão deveria ser: a pessoa de Cristo para o coração, a obra de Cristo para a consciência, e a palavra de Deus para o caminho.

O cerco de Antioquia durou oito meses. As dificuldades sofridas durante esse período foram terríveis. Por um tempo, as condições do solo e do clima foram apreciadas, até mesmo em excesso, mas o inverno chegou e a alegria deles acabou. As chuvas fortes inundaram seus acampamentos, e os ventos derrubaram suas tendas. Fome e pestilência, com suas muitas consequências, prevaleceram. A carne de cavalos, cachorros, e até mesmo de inimigos abatidos era avidamente devorada. No início do cerco, seus cavalos contavam 70.000, e no final contavam apenas 2.000, e dificilmente 200 davam para o serviço. Com o tempo, no entanto, o auxílio veio, ou teriam perecido até o último homem. Por meio da traição de um oficial sírio da cidade, que tinha o favor do emir*, e que comandava três torres, um portão foi aberto. O exército invadiu a cidade devota, gritando o grito de guerra dos cruzados, "Deus o quer!", e a Antioquia caiu mais uma vez nas mãos dos cristãos. Mas a vitória não estava completa. A cidadela recusou-se a se render, e logo após essa aparente vitória, uma força esmagadora de turcos apareceu, sob Cerboga, Príncipe de Mosul. Durante vinte e cinco dias, os cruzados estiveram novamente à beira da completa destruição entre Cerboga e a guarnição da fortaleza.

{* emir: título de nobreza equivalente a príncipe.}

Quandos os corações de todos começaram a desistir, e uma indiferença generalizada à vida prevaleceu, um astuto monge de nome Bartolomeu apresentou-se à porta da câmara do conselho, e declarou que tinha-lhe sido reveleado do céu em um sonho que sob o grande altar da igreja de São Pedro seria encontrada a lança que perfurou o Salvador na cruz. O chão foi aberto, mas após cavarem uma profundidade de vinte pés eles não encontraram o objeto. À noite, com os pés descalços e em vestes de penitência, o próprio Bartolomeu desceu no poço; e logo encontrou a ponta de uma lança. O anel de aço foi ouvido, era a arma sagrada. Ao primeiro relance da lança sagrada os desanimados cruzados passaram do desespero ao entusiasmo. Um salmo marcial foi cantado pelos padres e monges: "Que Deus se levante, e que seus inimigos sejam espalhados". Os portões de Antioquia foram escancarados, e então os guerreiros fanáticos precipitaram-se, com a lança sagrada sendo carregada pelo capelão do legado. O ataque foi irresistível; os sarracenos fugiram diante do ataque inesperado, deixando para trás uma imensa quantidade de espólios. Boemundo foi proclamado Príncipe da Antioquia, sob a condição de que ele deveria acompanhá-los até Jerusalém.

domingo, 10 de dezembro de 2017

O Cerco de Niceia

O zelo e a indignação dos peregrinos foram grandemente excitados quando viram a pirâmide de ossos que marcou o lugar onde Gualtério e seus companheiros tinham caído. Niceia foi sitiada e caiu em cerca de cinco semanas, mas eles ficaram muito desapontados com o saque esperado. Quando os turcos perceberam que sua posição não era mais sustentável, secretamente concordaram em entregar a cidade a Aleixo. A bandeira imperial foi erguida na cidadela, e a importante conquista foi guardada com invejosa vigilância pelos pérfidos gregos. Os murmúrios dos chefes eram inúteis, e após alguns dias de descanso, dirigiram sua marcha em direção à Frígia.

A grande batalha de Dorílio foi lutada cerca de quinze dias após o cerco de Niceia. Solimão reuniu suas hordas turcas e pôs-se em perseguição ao que ele chamou de bárbaros ocidentais. Ele os surpreendeu e atacou antes de terem alcançado Dorílio. Sua cavalaria é declarada pelos cristãos como tendo trezentos mil homens. Tão temível foi o início do ataque e tão espessas as flechas envenenadas, que os cruzados foram sobrepujados. Eles foram lançados em tal confusão que, não fosse a coragem pessoal e conduta militar de Boemundo, Tancredo, Roberto da Normandia, e a ajuda oportuna de Godofredo e Raimundo, todo o exército podia ter perecido. Com o tempo a longa batalha foi decidida em favor dos cruzados, e a campanha de Solimão caiu em suas mãos. A superstição afirmava que a vitória tinha sido ganha pelos campeões celestiais, que desceram para ajudar os cristãos.

Em uma marcha de 500 milhas através da Ásia Menor, o exército sofreu severamente de fome, sede, calor extremo, escassez de comida, e da dificuldade da marcha, o que diminuiu muito suas fileiras. A sede foi fatal para centenas em um único dia. Quase todos os cavalos morreram. E, acrescentando à confusão e consternação deles, a desunião apareceu entre os líderes, até mesmo em abertas contendas. Mas apesar de todas as dificuldades, a grande massa de cruzados que sobreviveram a essas calamidades seguiram a caminho de Jerusalém. Balduíno, o irmão de Godofredo, conseguiu se apossar da cidade de Edessa, e fundou o primeiro principado dos latinos além do Eufrates.

domingo, 26 de novembro de 2017

A Segunda Divisão da Primeira Cruzada

Entretanto, enquanto a multidão pobre, nua, iludida e plebeia era reduzida a nada, a aristocracia do Ocidente assumia a cruz, encorajavam-se uns aos outros, e preparavam-se para partir na mesma missão sagrada. Precisaremos falar um pouco sobre os chefes, para que possamos ter alguma ideia de quão minuciosamente a epidemia tinha afetado todas as classes.

O mais eminente foi Godofredo de Bulhão, um descendente de Carlos Magno. A primeira classe lhe é atribuída tanto na guerra quanto no conselho. Ele tinha acompanhado Guilherme da Normandia em sua invasão à Inglaterra; novamente, ao serviço de Henrique IV, ele possui a reputação de dar a Rodolfo sua ferida de morte, o que encerrou a guerra civil; e ele foi o primeiro do exército de Henrique a atravessar os muros de Roma. Ele é representado pelos cronistas como notável pela profundidade de sua piedade e pela suavidade de seu caráter na vida cotidiana; mas era sábio em seus conselhos, e ousado como um leão no campo de batalha. Ele foi acompanhado por seus dois irmãos, Eustácio e Balduíno; Hugo, irmão do rei da França; os condes Raimundo de Toulouse, Roberto da Flandres e Estêvão de Blois; e também Roberto, duque da Normandia, filho de Guilherme, o Conquistador. Mas tão grande e tão geral foi a excitação, que quase todos os galantes chefes da Europa estavam inspirados com coragem de cavaleiros e rivalidades nacionais, para se distinguirem nesta guerra santa.

Supõe-se que seiscentos mil homens tenham deixados seus lares nessa época, com inumeráveis atendentes, mulheres e servos, e operários de todos os tipos. A dificuldade de obter subsistência para tantos os levou a separarem suas forças e a prosseguirem até Constantinopla por diferentes rotas. Foi acordado que eles deveriam todos se encontrarem lá, e daí começaram suas operações contra os turcos. Após uma marcha longa e dolorosa, na qual milhares pereceram, os sobreviventes alcançaram a capital oriental. Aleixo, embora pudesse ser grato por uma força moderada vinda do Ocidente para ajudá-lo contra os turcos, que estavam perigosamente próximos dele, ficou atônito e alarmado com a aproximação de tantos chefes poderosos e grandes exércitos. A paz de suas fronteiras tinha sido perturbada pelos furtos e irritação das promíscuas multidões sob Pedro, o Eremita; mas ele temeu consequências mais sérias da chegada de tais tropas formidáveis sob Godofredo. Ao saber de uma companhia que uma outra logo se seguiria, ele os atraiu astuciosamente pelo Bósforo, de modo que não se reunissem nas proximidades de sua capital. Por esse meio, embora não sem ameaçadas hostilidades, os cruzados passaram, todos, para a Ásia antes da festa de Pentecostes.

domingo, 12 de novembro de 2017

A Primeira Cruzada (1096 d.C.)

1. O festival da Assunção, em 15 de agosto de 1096, foi afixado como o dia em que os cruzados começariam sua marcha. Mulheres pediram aos seus maridos, aos seus irmãos e aos seus filhos que tomassem a cruz; e aqueles que recusaram tornaram-se marcas de desprezo geral. Propriedades de todos os tipos foram vendidas para arrecadar dinheiro, mas como todos queriam vender e ninguém queria comprar, as coisas naturalmente caíram a um preço excessivamente baixo, e foram compradas principalmente pelo clero; desse modo quase todas as propriedades do país passaram para as mãos deles. Godofredo prometeu seu castelo de Bulhão, nas Ardenas, ao bispo de Liege. O artesão vendeu suas ferramentas, o fazendeiro seus implementos, para arrecadar dinheiro para a compra de equipamentos para a viagem. O fabuloso esplendor e riqueza do Oriente foram colocados diante da imaginação, já estimulada pelas lendas românticas de Carlos Magno e seus pares. Além do entusiasmo religioso que então animava todas as classes, uma variedade de outros motivos operavam na mente do povo. Para o camponês, antes não havia a oportunidade de deixar sua vida deprimida para pegar nas armas e abandonar o serviço ao seu senhor feudal. Para o ladrão, o pirata, o fora da lei, antes não havia perdão e restauração para a sociedade; para o devedor, antes não havia escape de sua obrigações, e para todos os que tomavam a cruz havia a certeza de que a morte na guerra santa os tornaria participantes da glória e bem-aventurança dos mártires. E tão grande foi a excitação produzida por essa epidemia papal que, muito antes do dia indicado para o início da expedição, a impaciência da multidão não conseguia se conter.

No início da primavera de 1096, Pedro [o Eremita], o primeiro missionário da cruzada partiu em sua marcha para o Oriente à frente de um exército selvagem e heterogêneo. Cerca de 6.000 da população dos confins da França e Lorraine reuniram-se em torno do Eremita, e pressionaram-no a liderá-los até o santo sepulcro. Ele então assumia o caráter, sem as capacidades necessárias, de um general, e então marcharam ao longo do Reno e do Danúbio. Gualtério Sem-Haveres, um pobre mas valente soldado, seguiu com eles com quinze mil pessoas. Um monge chamado Godescalco (ou Gottschalk) seguiu de perto Pedro e Gualtério com cerca de vinte mil dos habitantes das aldeias da Alemanha. Um quarto enxame de cerca de duzentos mil da escória do povo, conduzidos por um chamado Conde Emicho, pressionaram-lhe a retaguarda. Essas sucessivas multidões assim contavam totalmente trezentos mil guerreiros da cruz, assim chamados. Mas logo manifestou-se que um outro espírito os animava. Nenhum deles conhecia a cruz, senão como um emblema idólatra exterior. Velhos e enfermos, mulheres e crianças, e os indivíduos mais baixos do populacho ocioso, seguiram o exercito dos cruzados!

Nada podia ser mais melancólico e desastroso do que a conduta e o destino dessas multidões enganadas. Suas necessidades e quantidades logo os compeliram a se separarem. Eles estavam sem ordem ou disciplina, e a maioria deles desprovidos de armadura ou dinheiro. Eles não tinham nem ideia da distância de Jerusalém, ou das dificuldades que seriam encontradas pelo caminho. Tão ignorantes eram que, ao avistarem a primeira cidade além dos limites de seu conhecimento, logo inquiriram se não seria Jerusalém. Em vez de sobriedade e ordem em sua marcha, esta foi marcada por assassinato, pilhagem, devassidão, e de toda sorte de hábitos infames. Os inofensivos habitantes judeus de cidades às margens do Mosela, do Reno e do Danúbio, através das quais eles marcharam, foram saqueados e mortos por serem assassinos de Cristo e os inimigos da cruz. A população da Hungria e da Bulgária levantou-se contra eles por causa de seus hábitos perturbadores e de pilhagem, e uma grande quantidade deles foram mortos.

Após repetidos desastres e aventuras tolas, eles chegaram em Constantinopla; mas Aleixo, o imperador grego, mais alarmado do que satisfeito com seus aliados, os transferiu rapidamente, se não traiçoeiramente, pelo Bósforo. Uma grande batalha ocorreu logo em seguida, entre os muros de Niceia -- a capital turca. O exército do Eremita foi feito em pedaços por Solimão, o sultão turco de Icônio. Gualtério Sem-Haveres foi morto com a maioria de seus seguidores, e seus ossos foram ajuntados em uma grande pilha para alertar seus companheiros da desesperança de sua empreitada. É comprovado que nessas mal conduzidas expedições, trezentos mil pereceram, e alguns estendem o número para meio milhão. Daqueles que tinham começado sob a direção de Pedro e de seus tenentes, não mais de 20.000 sobreviveram e estes tentaram encontrar seu caminho de volta para casa, mas apenas para contar o triste destino de seus companheiros que tinham morrido pelas flechas dos turcos e dos húngaros, ou pela escassez e fadiga. Dificilmente sequer um dos do exército de Pedro alcançou as fronteiras da Terra Santa. O papa Urbano viveu para ouvir sobre as angústias e misérias de sua própria obra maligna, mas morreu antes da captura de Jerusalém.

sábado, 4 de novembro de 2017

Papa Urbano e as Cruzadas

Em março de 1095, um concílio foi convocado para se reunir com Urbano em Placentia, a fim de realizar uma consulta sobre a guerra santa e outros assuntos importantes. Duzentos bispos, quatro mil clérigos e trinta mil leigos compareceram; e, como não havia edifício grande o suficiente para conter a vasta multidão, as sessões maiores foram realizadas em um campo próximo à cidade. Além do projeto da guerra santa, o papa abraçou a favorável oportunidade de confirmar as leis e afirmar os princípios de Gregório. E ali em Placentia a sanção final foi dada às duas características mais fortes nas doutrinas e na disciplina da igreja romana -- a saber, a transubstanciação e o celibato do clero.*

{* Waddington, vol. 2, p. 102.}

Em novembro do mesmo ano, outro concílio foi convocado para se reunir com o papa em Clermont, na Auvérnia. As citações a esse concílio eram urgentes, e o clero foi encarregado de excitar os leigos na causa da cruzada. Uma vasta assembleia de arcebispos, bispos, abades, etc. foi reunida, as cidades e vilas vizinhas se encheram de estranhos, enquanto muitos foram obrigados a alojar-se em barracas. A sessão durou dez dias. Foram tratados os cânones usuais referentes à condenação da simonia, etc. Urbano se aventurou a avançar um passo além de Gregório, ao proibir não apenas a prática da investidura laica, como também proibindo que qualquer eclesiástico devesse jurar fidelidade a um senhor secular -- uma proibição que pretendia acabar com qualquer dependência da igreja ao poder secular. Assim vemos o astuto papa aproveitando cada vantagem de sua extrema popularidade, enquanto as mentes de todos estavam absorvidas com o assunto da vez: a santa cruzada. Nenhum momento poderia ser mais favorável para o avanço do grande objeto de ambição papal: a supremacia reconhecida sobre a Cristandade latina; ou a elevação do próprio Urbano sobre o papa rival Clemente*, assim como sobre os soberanos seculares que o apoiavam.

{* N. do T.: também conhecido como antipapa Clemente III.}

Na sexta sessão a cruzada foi proposta. Urbano subiu em um alto púlpito no mercado e dirigiu-se às multidões reunidas. Sua discurso foi longo e excitante. Ele falou sobre as glórias antigas da Palestina, onde cada pedaço de chão tinha sido santificado pela presença do Salvador, pela Sua Virgem Mãe, e por outros santos. Ele se alongou sobre a presente condição do território sagrado -- possuído por um povo ímpio, os filhos da serva egípcia; sobre as indignidades, os atentados, a tirania  que infligiram aos cristãos redimidos pelo sangue de Cristo. Ele também não se esqueceu de falar das progressivas invasões dos turcos sobre a cristandade. "Lancemos fora a escrava e seu filho", clamou ele, "Que todos os fiéis armem-se. Ide adiante, e Deus estará convosco. Redimi vossos pecados -- vossa rapinagem, vossos incêndios, vossos derramamentos de sangue -- pela obediência. Que as famosas nações dos francos demonstrem seu valor em uma causa onde a morte é a certeza da bem-aventurança. Considerai uma alegria morrer por Cristo onde Cristo morreu por vós. Não pensai nos parentes ou no lar; vós deveis a Deus um amor maior, pois para um cristão qualquer lugar é exílio, qualquer lugar lhes é lar e país". O egoísta papa não deixou de apelar para uma paixão sequer. Mas seu verdadeiro desígnio e grande objetivo era dispor de barões rebeldes e monarcas obstinados, envolvendo-os em uma distante e ruinosa expedição, e, na ausência deles, reunir em suas próprias mãos todas as linhas desse grande movimento e consolidar os elevados esquemas de seu predecessor e mestre, Hildebrando.

Concluindo, o papa blasfemo ofereceu absolvição para todos os pecadores -- os pecadores de assassinato, adultério, assalto, incêndio criminoso -- e isso sem penitência a todos que tomassem as armas nessa causa sagrada. Ele prometeu vida eterna a todos os que sofressem a gloriosa calamidade da morte na Terra Santa, ou até mesmo em seu caminho até lá. Os cruzados passariam imediatamente para o paraíso. A grande batalha entre a Cruz e a Crescente* seria decidida para sempre no solo da Terra Santa. Em relação a ele próprio, como ele mesmo disse, ele devia permanecer em casa; o cuidado da igreja o detinha. Se as circunstâncias permitissem, ele seguiria, porém, como Moisés, enquanto eles estivessem matando os amalequitas, ele estaria perpetuamente engajado em fervente e prevalecente oração pelo sucesso deles.**

{* N. do T.: a [lua] crescente símbolo do islamismo }

{** Robertson, vol. 2, p. 630; Milman, vol. 3, p. 233; Waddington, vol. 2, p. 77.}

O discurso do papa foi interrompido por uma entusiástica exclamação de toda a assembleia: "Deus o quer! -- Deus o quer!", palavras que mais tarde se tornariam o grito de guerra dos cruzados, e toda a assembleia declarou-se o exército de Deus. O contagioso frenesi se espalhou com uma rapidez inconcebível. "Nunca, talvez", disse alguém, "um único discurso de um homem operou resultados tão extraordinários e duradouros como o de Urbano II no Concílio de Clermont". "Foi a primeira explosão de fanatismo", disse outro, "que sacudiu toda o tecido da sociedade, desde as extremidades do Ocidente até o coração da Ásia, por mais de dois séculos".

Tendo assim declarado de forma tão clara e concisa quanto possível as causas ostensivas das Cruzadas, ou melhor, os motivos do papado, precisamos apenas falar mais um pouco sobre algumas datas e sobre mais alguns detalhes de cada expedição.

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